Por Leonardo Sakamoto, no UOL
É extremamente saudável para o país que o Congresso Nacional mergulhe na discussão sobre um imposto mínimo para os super-ricos, medida proposta pelo ministro Fernando Haddad para compensar a isenção de quem ganha até R$ 5.000 por mês. Antes de mais nada, um lembrete: super-rico não é você, que faz parte da massa de 212,4 milhões que aprenderam a se virar, mas as 141,4 mil almas que ganham mais de R$ 50 mil mensais.
Saudável porque estamos discutindo justiça tributária e progressividade de imposto (não, progressividade não significa uma “taxa woke”, mas que quem ganha precisa pagar proporcionalmente mais), algo que pode ajudar a construir nosso futuro. E não projetos de lei para impedir meninas de dez anos grávidas após terem sido estupradas pelos próprios familiares e que correm risco de morte a terem acesso a um aborto legal – algo que nos mantém presos ao passado.
A ideia é simples: a galera que ganha mais de R$ 50 mil por mês e não paga pelo menos 10% de imposto, vai começar a ser cobrado progressivamente se o projeto de lei passar. Quem já paga imposto igual ou superior a isso não vai precisar pagar mais.
Contudo, vale a pena parafrasear o Evangelho de Mateus para lembrar que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um parlamentar super-rico aprovar a taxação de sua classe social. E o que mais temos entre deputados e senadores são pessoas que são desse grupo ou que o representam. Uma coisa é aprovar uma medida que pode levar votos e ajudar na reeleição de congressistas, como a isenção dos R$ 5.000. A outra é cortar na própria carne.
Além dos congressistas, os super-ricos e sua condição privilegiada são defendidos com unhas e dentes pelos terríveis Guerreiros do Capital Alheio, membros da classe trabalhadora que não se veem como tais e que vão às últimas consequências para defenderem os privilégios dos bilionários e multimilionários.
Eles acreditam que estão fazendo justiça ao defender a injustiça tributária. Projetam-se nos mais ricos e, sonhando um dia chegar lá, desejando que a condição deles seja mantida para, quem sabe, também poderem delas usufruir. Não se importam com as consequências negativas da desigualdade na estrutura social, contanto que sua chance de um em um milhão de fazer parte do topo da pirâmide seja mantida.
Caem no conversê fácil de que, ao taxar ricos acionistas de empresas, o país abre espaço para taxar empreendedores, ignorando que alguém que ganhar três salários mínimos já paga proporcionalmente mais imposto do que alguém que ganha 33. Dizem que ao serem menos taxados, os ricos abrem mais empregos, mesmo que o destino de muito dividendo seja acúmulo e luxo. Compram a ideia de um Estado mínimo e, ao mesmo tempo, demandam melhor educação, saúde, segurança, opções de cultura e lazer e transporte públicos e gratuitos.
Combater a desigualdade não resolve de vez os problemas do país, mas é uma ação fundamental para indicar o tipo de sociedade que gostaríamos de construir: um país que acredita na redução das regras para ricos e pobres como pré-condição para o desenvolvimento coletivo ou um que tem um orgasmo toda vez que um bilionário brasileiro sobe um degrau no ranking de bilionários globais da Forbes.
A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.
A taxação dos dividendos seria apenas a ponta do iceberg apenas. Tributar os super-ricos pode arrecadar cerca de R$ 292 bilhões anuais – dados de 2021. É o que defendem a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), os Auditores Fiscais pela Democracia (AFD), o Instituto Justiça Fiscal (IJF), entre outras instituições, em uma série de frentes, da renda ao patrimônio. Mas uma ponta difícil de transpor.
Como já disse aqui, o Brasil é um transatlântico de passageiros, com divisões de diferentes classes, com os mais ricos tendo mais conforto em suas cabines. Não estou entrando no mérito de como chegamos a essa situação, nem propondo uma revolução imediata para que cabines diferenciadas deixem de existir. Mas é fundamental que a terceira classe conte com a garantia de um mínimo de dignidade e primeira classe pague passagem progressivamente proporcional à sua renda.
Enquanto isso, seguimos parecidos como um navio remado por trabalhadores que, a qualquer sinal de tempestade, aumenta a frequência do estalar do chicote enquanto poupa meia dúzia de passageiros ricos. Ironicamente, uma parte dos remadores não questiona a exploração, mas rema sonhando feliz ao ver a imagem dos mais ricos glamourizando no Instagram.
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