Quando Jorge Mario Bergoglio se tornou Papa Francisco, em 2013, trouxe com ele mais do que um novo estilo de liderança: disposição para enfrentar, de forma inédita, os escândalos que há décadas corroíam a credibilidade da Igreja Católica. Ao longo de doze anos, seu pontificado ficou marcado por uma tentativa genuína — e corajosa — de reformar as estruturas internas do Vaticano, sobretudo nas áreas mais sensíveis: os crimes sexuais cometidos por membros do clero e os escândalos financeiros no coração da Santa Sé.
No combate aos abusos sexuais, Francisco quebrou o silêncio institucional que prevaleceu durante pontificados anteriores. Convocou uma cúpula global sobre pedofilia em 2019, reforçou os protocolos de denúncia, criou a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores e puniu religiosos de alto escalão, inclusive cardeais, como Theodore McCarrick, nos Estados Unidos, expulso do sacerdócio após denúncias de abuso. Pela primeira vez, a Igreja passou a reconhecer a gravidade dos crimes e a se comprometer publicamente com as vítimas — mesmo que o caminho ainda seja longo.
No campo financeiro, a atuação do papa foi igualmente firme. Reformou o Instituto para as Obras de Religião, conhecido como o banco do Vaticano, fechou 5 mil contas suspeitas, implementou normas rigorosas contra a lavagem de dinheiro e criou mecanismos de fiscalização e auditoria. Nomeou especialistas laicos e mulheres para cargos de supervisão, numa tentativa clara de romper com o monopólio interno de poder.
Um dos momentos mais simbólicos desse enfrentamento foi a queda do cardeal Giovanni Angelo Becciu, em setembro de 2020. Figura de enorme influência dentro da Cúria, Becciu ocupava cargos estratégicos, como o de substituto para Assuntos Gerais da Secretaria de Estado — com acesso diário ao papa — e depois o comando da Congregação para as Causas dos Santos. Foi o próprio Francisco quem o nomeou cardeal em 2018.
Mas tudo ruiu quando vieram à tona denúncias de corrupção envolvendo Becciu, incluindo o uso de recursos da Igreja para beneficiar familiares e negócios pessoais. Em uma reunião descrita como tensa, o Papa exigiu sua renúncia ao cargo e ao título cardinalício, numa decisão raríssima e de enorme impacto político e simbólico. Becciu alegou inocência e afirmou que a demissão foi “um raio vindo do nada”, mas reconheceu que o papa “já não tinha mais fé” em sua palavra após receber relatórios de magistrados.
O escândalo girava em torno da compra de um prédio de luxo em Londres, no valor de 232 milhões de dólares, usando fundos da Igreja, inclusive dinheiro das esmolas. A operação envolveu o uso de empresas offshore, e levou à suspensão de cinco funcionários do Vaticano. O empresário Gianluigi Torzi foi preso sob suspeita de extorsão e peculato, e a investigação revelou também o repasse de recursos a um hospital em ruínas que empregava parentes de Becciu.
A queda do cardeal foi chamada de “terremoto no Vaticano”. Um lembrete de que os pecados da Igreja não estão apenas nos púlpitos, mas também nos bastidores do poder. Francisco enfrentou esse cenário com a consciência de que, sem transparência e justiça, a fé perderia sua base moral.
Nem todas as reformas deram os frutos esperados. A própria Comissão para a Proteção de Menores, criada por Francisco, apontou em seu primeiro relatório uma “falta preocupante” de estruturas de apoio às vítimas. E os vazamentos de documentos — como o Vatileaks e os Panama Papers — continuaram a mostrar resistências internas, manobras de sabotagem e interesses em jogo.
Mas Francisco foi o primeiro papa a admitir que a crise não era só espiritual. Que havia culpa, silêncio e conivência nas mais altas esferas. Sua disposição em agir custou-lhe apoios, desgastou alianças e gerou inimigos dentro da Igreja. Ainda assim, ele não recuou.
Morreu em abril de 2025 como um papa que, mesmo sem reformar dogmas centrais, enfrentou os maiores fantasmas da Igreja com coragem e humanidade. Não limpou toda a casa, mas escancarou as janelas e expulsou o ar viciado que muitos fingiam não sentir.