“Alguns acontecimentos históricos são da ordem do incontornável, daquilo que não se pode esquecer”. Assim a jornalista Marialva Barbosa apresenta “A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na ditadura”, lançado pela Mórula. Fruto de uma pesquisa historiográfica baseada em fontes documentais e depoimentos de testemunhas, a obra revela a participação das empresas do Grupo Folha na ditadura.
A pesquisa foi conduzida por seis autores: a jornalista e historiadora Ana Paula Goulart Ribeiro, a historiadora Amanda Romanelli, o historiador André Bonsanto, a jornalista Flora Daemon, a jornalista Joëlle Rouchou e o historiador Lucas Pedretti.
Ao longo de 244 páginas, divididas em quatro seções, o livro aborda temas como o apoio do Grupo Folha à repressão, a participação de militares e policiais na estrutura da empresa, trabalhadores presos, perseguidos ou demitidos ilegalmente, entre outros crimes, que se somam às inúmeras violações de direitos durante um dos períodos mais sombrios da história do Brasil.
A pesquisa investiga a participação de empresas como Lithographica Ypiranga, TV Excelsior, Fundação Cásper Líbero, TV Gazeta, e os jornais Última Hora, Notícias Populares, Agência Folha, Cidade de Santos, Folha da Tarde e Folha de S.Paulo. Ela apresenta a Folha não apenas como um jornal, mas como um grupo empresarial econômico que se beneficiou e lucrou com o regime militar, e como, a partir dessa relação, se estabeleceu como um grande conglomerado de imprensa e comunicação até os dias de hoje.
“O estudo se estrutura a partir de um debate mais amplo sobre a ditadura e a necessidade de incorporar nas análises as investigações sobre a dimensão empresarial desse período. Acho que isso tem a ver com uma mudança historiográfica e política mais ampla nos últimos anos, que tem colocado a importância de falar da ditadura a partir de vários recortes, ou seja, de raça, classe, gênero, território, etnia e, neste caso, da dimensão empresarial e econômica. Ou seja, parar de pensar a ditadura apenas do ponto de vista das violações individuais de direitos humanos, que são importantes, mas pensar também do ponto de vista de um projeto econômico-social que se impõe à força e que produz benefícios para uma minoria privilegiada”, detalha Lucas Pedretti.
De forma inédita, o livro traz o depoimento de um agente da repressão que atuou no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo. Ele confirma a participação do Grupo Folha no empréstimo de carros para ações de repressão que teriam resultado no desaparecimento forçado de opositores do regime. O DOI-CODI era um centro de tortura e assassinato de pessoas que se opunham à ditadura militar.
Para Rosa Cardoso, ex-coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, “esta obra contesta as ‘falas de si’ que a Folha de S.Paulo faz sobre sua interação com o golpe e a ditadura de 1964.” A advogada e professora universitária, que escreve a nota introdutória, define o relacionamento da Folha com a ditadura como “intenso, amplo, duradouro, proativo e destrutivo de muitas vidas”.
“A serviço da repressão” pode ser definido tanto como uma ferramenta de preservação da memória quanto como um instrumento de denúncia sobre os crimes cometidos durante esse período.
Leia a entrevista com Flora Daemon, coautora de “A Serviço da Repressão – Grupo Folha e Violações de Direitos na Ditadura”:
DCM – Explique a ligação da Volkswagen com esse processo de reparação por seu apoio à ditadura Militar e onde entra o grupo Folha nessa história?
Flora Daemon – O caso Volks é muito emblemático na história recente do Brasil porque a Volkswagen colaborava com a repressão de diversas maneiras. Depois de uma luta muito árdua por parte dos trabalhadores e das vítimas, conseguiu-se implicar no âmbito da justiça a empresa para que fossem apuradas as responsabilidades por sua ligação com a ditadura. No desenvolvimento desse inquérito, assinou-se um termo de ajustamento de conduta. Existiam três caminhos possíveis: a condenação da empresa, a absolvição da mesma ou, efetivamente, um termo de ajustamento de conduta, que, em termos objetivos, significa que a própria empresa assume essa responsabilidade de colaboração com a repressão e gera algumas reparações possíveis.
No caso da Volks, o MP e a empresa desenharam esse termo, em que os trabalhadores vitimados foram indenizados. Houve uma parte da destinação desses recursos para a identificação das ossadas de pessoas que estavam depositadas na vala clandestina de Perus, outra parte para a criação de um memorial para os advogados que lutaram contra a ditadura, e uma parte menor desses recursos foi destinada à investigação de outras dez empresas que já tinham indícios de colaboração com a repressão, dentre elas o grupo Folha de São Paulo. E foi assim que o MP escolheu Aracruz, Cobrazma, Companhia Docas de Santos, CSN, Fiat, Folha de São Paulo, Itaipu, Josapar, Paranapanema e Petrobras, que seriam investigadas por equipes selecionadas pela UNIFESP para esse fim específico.
Aí, seu grupo é escolhido para fazer a investigação do grupo Folha de São Paulo, certo?
Passamos por uma seleção pública, disputamos com outras equipes e fomos selecionados.
Quando foi protocolada no MPF a ação contra o grupo Folha e exatamente qual o questionamento e a proposta? Que tipo de reparações e contrapartidas estão inclusas no texto?
Ao final de nossa investigação, entregamos ao MPF um relatório robusto sobre tudo o que encontramos. Esse relatório, de certa forma, é o livro, com alguns ajustes e cortes, mas, enfim, uma boa parte do que temos no relatório entregue ao MPF está no nosso livro. Foram entregues junto todos os documentos que encontramos, além das entrevistas realizadas. O MPF teve acesso a tudo. O que posso dizer, sem risco de errar, é que a Folha de São Paulo também teve acesso a todo esse material para que pudesse se defender e preparar sua defesa na justiça.
Depois disso, não temos mais informações sobre em que pé está o inquérito; o que posso afirmar é que algumas testemunhas e vítimas já começaram a ser ouvidas pelo MPF. Eu sei porque elas me disseram pessoalmente. Sabemos de algumas entrevistas e oitivas que aconteceram nesse sentido e depoimentos. Te passo o número do inquérito, mas já foram interpelados por outros jornalistas e o MPF respondeu que o processo corre em segredo de justiça. Ref.: Inquérito Civil nº 1.34.001.004107/2022-05.
Quais os agentes do DOI-CODI foram entrevistados e qual o modo de operação no grupo Folha?
O que podemos falar dos agentes Marival Chaves do Canto (DOI-Codi/SP) e Carlos Alberto Augusto (DEOPS) é que eles serviram de testemunhas sobre as relações de proximidade e cumplicidade do grupo Folha com a repressão. No caso do Marival, a contribuição dele à nossa investigação é ainda maior, porque ele fala justamente como era o modus operandi do empréstimo dos carros de distribuição de jornal da Folha ao DOI-Codi/SP. Não porque ele participasse dessas operações, já que ele atuava na parte de inteligência do DOI e não fazia operações de rua que contavam com os carros de distribuição da Folha, mas ele testemunhou e escutou, dentro do DOI, detalhes de como essas operações se davam.
Em depoimento para nós, ele explica como esse processo acontecia. Ele falou, por exemplo: combinava-se em uma ligação com a Folha; ela destinava o carro com motorista, deixando esse carro em determinado ponto. O motorista da Folha de São Paulo se afastava do veículo, deixando a chave na ignição, e, em determinado momento, aparecia um agente do DOI e pegava o veículo para fazer uso em ações de monitoramento, sequestro e prisões de pessoas. Depois, combinava-se a devolução da mesma maneira. Marival testemunhou esses processos, mas ele, propriamente dito, não atuou nessas ações de rua. E, com relação ao Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carteira Preta”, ele testemunha sobre a relação de proximidade de Otávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho [donos da Folha] com a repressão.
Ele fala da presença massiva de policiais estratégicos do DEOPS dentro do grupo Folha, cumprindo seu dever com honradez, como ele mesmo afirma, tanto dentro do DEOPS como na Folha. Aí, entendemos que havia um objetivo, uma estratégia na presença daqueles policiais; por último, ele também fala da colaboração inequívoca dos dirigentes da Folha com a repressão, afirmando que ambos deveriam receber algum benefício econômico por ter colaborado tanto com o regime militar.
Fazendo uma comparação grosseira, podemos dizer que a Folha da Tarde era o gabinete do ódio e da desinformação do golpe, espalhando fake news e acobertando a tortura e os assassinatos de lideranças, mutilando inocentes e crianças, e passando pano para todos os desmandos do governo militar. O Grupo Folha foi subserviente ao regime para se safar de uma severa crise em suas contas e dívidas?
Nossa equipe foi selecionada para realizar uma longa pesquisa, com o apoio do Ministério Público Federal, sobre a atuação do Grupo Folha durante a ditadura. Após realizarmos uma profunda investigação, é possível dizer, categoricamente, que a empresa de comunicação colaborou editorial e, sobretudo, materialmente com a repressão como nenhuma outra do país. É digno de observação o fato de que, ainda assim, a sociedade não associe a Folha à ditadura, mas à democracia. Isso se deve ao trabalho muito bem feito de reposicionamento de imagem e, fundamentalmente, de apagamento das ações graves cometidas pelo Grupo.
Essa relação estreita entre o Grupo com a ditadura rendeu, sem dúvidas, benefícios econômicos a seus dirigentes. Em nossa pesquisa analisamos o grande crescimento do Grupo Folha e a relação da empresa com o poder ditatorial. Nesse sentido nosso livro apresenta a história da Folha para além de um jornal, mas como um grupo empresarial econômico que se beneficiou e lucrou com o regime militar, se tornando um grande conglomerado comunicação.
Quantos anos de pesquisa foram dedicados pelos autores para montar o livro? Esse projeto teve início em que ano?
Durante dois anos, a partir do final de 2021, a equipe composta por Ana Paula Goulart Ribeiro (UFRJ), Amanda Romanelli (PUC-SP), André Bonsanto Dias (UEM), Flora Daemon (UFRRJ), Joëlle Rouchou (FCRB) e Lucas Pedretti (UERJ) aprofundou as investigações sobre denúncias levantadas no âmbito da Comissão Nacional da Verdade. A pesquisa resultou num inquérito aberto pelo Ministério Público Federal e na série Folha Corrida.
O caso Joaquim Seixas é escandalosamente emblemático: o líder do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes) teve sua morte anunciada 16 horas antes do óbito oficial, em uma manchete da Folha da Manhã, o que abre a possibilidade de um envolvimento real do Grupo Folha com o regime de exceção. Em suas pesquisas para o livro, quais provas documentais corroboram essa ligação?
Existe uma especificidade das investigações sobre violações de direitos durante a ditadura: os crimes perpetrados e a colaboração material e operacional dificilmente deixam rastros documentais explícitos. Por isso, em nosso trabalho cruzamos metodologias, testamos hipóteses e fundamentalmente realizamos uma operação de checagem bastante minuciosa. E nesse sentido cruzar depoimentos de fontes que ocuparam lugares diferentes na história é fundamental. Por essa razão é que destaco duas entrevistas que fizemos que podem ser consideradas uma virada de chave na compreensão do papel do Grupo Folha durante a ditadura: com um ex-agente da Inteligência do DOI-Codi e com um ex-agente do DOPS/SP.
Para você, ver o ex-presidente Bolsonaro, o golpista, sendo oficialmente julgado como réu, quais são os sentimentos que emergem?
A instabilidade da democracia brasileira está diretamente ligada à dificuldade que nós temos de lidar com o tema da ditadura. Inclusive dentro do próprio campo da esquerda. Se nós desejamos construir um país a partir de bases sólidas precisamos, num mesmo movimento, investigar e responsabilizar as empresas que foram aparato e deram sustentação para a repressão, tirar do segundo plano aqueles que lutaram por nosso país no período mais sombrio da história recente e, sem dúvidas, apurar com rigor a atuação de militares e de civis na tentativa de golpe de 2023.
Qual é a importância de debater a atuação da mídia durante a ditadura?
Flora Daemon Os meios de comunicação foram, são e serão sempre os pilares da defesa da democracia. E quando eles falham deliberadamente, como aconteceu a partir de 1964, é necessário refletir sobre processos contemporâneos de responsabilização. Uma empresa apoiar a ditadura é grave. Uma empresa do ramo da comunicação promover campanhas, conduzir interpretações e dar sustentação material à repressão é gravíssimo justamente porque ela deveria ser o bastião da democracia. O Brasil precisa ter coragem para falar com serenidade e cuidado ético sobre regulação da mídia e, também, sobre responsabilização e reparação.
Como o livro contribui para a memória histórica do Brasil? Conseguiremos, com a eventual condenação de Bolsonaro, passar esse período a limpo e realmente criar a “vacina democrática e republicana”?
É difícil dizer. O processo de apagamento das atrocidades cometidas pela ditadura com a inequívoca sustentação financeira e operacional do empresariado brasileiro nos coloca um grande desafio. Mas eu não me sinto confortável numa posição pessimista. Sei que nosso percurso é longo e árido, sei que precisamos de mais cabeças nessa luta e costumo me amparar nas palavras de Fernando Birri imortalizadas por Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
Qual instituição apoiou a pesquisa sobre a responsabilidade do Grupo Folha?
Os autores da pesquisa são docentes e pesquisadores da UFRJ, UFRRJ, UERJ, UEM, FCRB e PUC-SP. Mas a pesquisa foi desenvolvida no âmbito da UNIFESP, mais especificamente no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF). É importante destacar que toda investigação contou com o apoio e orientação do Ministério Público Federal.
Qual a postura do Grupo Folha? Eles assumiram seu envolvimento com o regime militar?
Nossa investigação realizou mais de quarenta entrevistas com vítimas e testemunhas da colaboração material do Grupo Folha com a repressão. Foram dezenas de jornalistas da própria empresa que atestaram a presença de policiais distribuídos em redações diversas e setores administrativos e de segurança da empresa, monitorando, perseguindo, ameaçando esses profissionais. Revelamos como ocorriam esses processos sistemáticos, bem como a relação orgânica e trabalhista de importantes delegados do DOPS com os dirigentes do Grupo Folha. A empresa jornalística contratou dois delegados do DEOPS para trabalhar dentro dos jornais diretamente vinculados à direção.
Entrevistamos, também, militantes da ALN, MRT, PORT e MOLIPO que ajudaram na elucidação de episódios específicos e vítimas diretas de ações em que os carros da Folha foram utilizados para vigilância e prisão de militantes. Destaco, também, entrevistas com agentes do DEOPS e fundamentalmente do DOI-Codi de São Paulo que, pela primeira vez, confirmaram o empréstimo do carros de distribuição dos jornais aos agentes da repressão e detalharam o modus operandi de tais ações.
Nos dedicamos a analisar os jornais que compunham o Grupo jornalístico e relevamos como se deram as campanhas de ação psicológica. De maneiras distintas, todos os periódicos do Grupo de comunicação atenderam aos interesses da repressão.
Tornamos públicos os benefícios econômicos que o Grupo Folha obteve a partir da relação de cumplicidade com a ditadura por meio de concessões questionáveis, empréstimos públicos, obtenção de recursos americanos (USAID), aquisição de empresas perseguidas ou enfraquecidas pelo contexto ditatorial etc.
O slogan “Um jornal a serviço do Brasil!” é curioso. Para qual Brasil esse veículo de comunicação esteve a serviço?
Diversos entrevistados fizeram alusões ao lema da Folha e destacaram justamente essa triste ironia. O título do nosso livro é “A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos durante a ditadura” por essa razão. Após uma longa e dedicada investigação não há dúvidas: o Grupo Folha precisa ser investigado na justiça por sua colaboração operacional com a repressão. Não se trata de revanchismo, mas de compromisso com a democracia e com o país que queremos e precisamos ser.