A ditadura militar instaurada no Brasil após 1964 deixou um rastro de famílias destruídas, torturas, mortes e traumas psicológicos profundos. Também legou um conjunto de evidências sobre os agentes da repressão: seus financiadores, algozes e mandantes.
Baseada no recém-lançado livro “A Serviço da Repressão: Grupo Folha e Violações de Direitos na Ditadura” — que dá suporte à série documental “Folha Corrida” — a produção oferece uma leitura crítica da colaboração do Grupo Folha de S.Paulo com o regime militar. Com apuração rigorosa, a série revela episódios pouco conhecidos que ajudam a compreender a relação entre mídia e poder na história do Brasil.
Com estreia marcada para 27 de abril, às 20h, “Folha Corrida” busca provocar reflexão e conscientização sobre as consequências das alianças entre veículos de imprensa e o regime ditatorial. Em um momento em que a liberdade de expressão e a responsabilidade da mídia voltam a ser temas centrais, a série se apresenta como conteúdo essencial.
Conhecer essa história é necessário para que possamos entender o presente — sobretudo diante de episódios recentes como os pedidos de anistia feitos por antigos apoiadores do regime após os ataques de 8 de janeiro de 2023. “Como a vida não está fácil, celebramos cada pequena conquista”, diz a roteirista Marta Nehring, que deu esta entrevista ao DCM:
DCM – Em uma comparação direta, podemos dizer que a Folha da Tarde cumpriu o papel de gabinete do ódio e da desinformação durante o golpe de 1964, propagando fake news, acobertando torturas e assassinatos, mutilando inocentes e crianças, e protegendo os desmandos do governo militar? O Grupo Folha teria se alinhado ao regime para sair de uma crise financeira?
Marta Nehring – Quem pode responder com mais precisão são as pesquisadoras. O que posso adiantar é que Carlos Caldeira Filho e Otávio Frias eram donos da rodoviária de São Paulo, uma fonte de renda poderosa. A compra da Folha, em 1962, está ligada à atuação de Frias no IPES [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais], e os militares golpistas — como o próprio Frias relata em suas memórias — buscavam uma alternativa ao Grupo Estado. Mas essa parte deve ser confirmada com as pesquisadoras, pois são elas que validam o conteúdo.
Onde a série está sendo exibida? Há possibilidade de ser adaptada para um longa-metragem?
A série foi financiada pelo ICL e pensada em quatro episódios de aproximadamente 30 minutos. Sobre uma possível versão em longa, essa decisão cabe ao diretor Chaim e ao produtor Cleisson. A pergunta deve ser direcionada a eles.
O caso de Joaquim Seixas é emblemático: líder do MRT, teve sua morte noticiada 16 horas antes do horário oficial de óbito, em manchete da Folha da Manhã, sugerindo possível envolvimento direto do Grupo Folha com o regime. A pesquisa encontrou outros casos semelhantes que evidenciem o terror vivido pelos militantes da época?
É preciso cautela ao tratar da manchete que antecipou a morte do Joaquim Seixas. Segundo o próprio Ivan Seixas (cito de memória), “todos os jornais eram obrigados a divulgar os informes da polícia; a diferença é que os jornais do Grupo Folha, especialmente a Folha da Tarde, celebravam as mortes”. É importante lembrar que a pesquisa da série é fruto do trabalho das pesquisadoras.
Você também é coautora do livro “Crianças e Exílio”, lançado recentemente em Porto Alegre, que reúne memórias e testemunhos desse período sombrio. Agora, diante do julgamento de Bolsonaro como réu, qual o sentimento que prevalece?
É uma etapa da luta. Como a vida não está fácil, celebramos cada pequena conquista. Assim como fizemos ao protocolar o pedido de anistia coletivo para filhos, netos, sobrinhos e enteados de pessoas atingidas pela repressão política. É um passo importante para contar essa história.
Qual a importância de debater o papel da mídia durante a ditadura?
Fundamental! Jornais como a Folha da Tarde, que teve grande sucesso de vendas ao adotar um discurso fascista (e é importante anotar isso: eles seguiram por esse caminho porque tinham público), foram peças-chave na desumanização do “inimigo interno” — a esquerda.
Não poupavam adjetivos: terroristas, facínoras, monstros, entre outros. A Folha da Tarde chegou a chamar o PCB de “nazismo vermelho”. Era um jornal com muitos delegados entre seus redatores. Funcionava como porta-voz da repressão. Esse discurso ainda ecoa — até hoje, “comunista” é usado como xingamento.
Como a série contribui para a preservação da memória histórica? A condenação de Bolsonaro pode representar um acerto de contas com esse passado e criar uma espécie de “vacina democrática”?
Amo pessoas otimistas. Estamos trabalhando muito para isso.
Que instituição apoiou a pesquisa sobre a responsabilidade do Grupo Folha?
Está ligada ao Termo de Ajuste de Conduta firmado entre a Volkswagen e o MPF. Mas quem pode explicar melhor são as pesquisadoras.
Que tipo de material é apresentado na série?
Arquivos, entrevistas com ex-jornalistas do Grupo Folha, ex-guerrilheiros de diversas organizações e agentes da repressão. A Folha preferiu não se pronunciar.
O slogan da Folha de S.Paulo é “um jornal a serviço do Brasil!”. Para qual Brasil, afinal, esse jornal serviu?
Aos interesses econômicos do Grupo Folha. Alinharam-se ao poder vigente para lucrar. Quando os ventos mudaram, aderiram ao movimento Diretas Já.