O DCM entrevistou, nesta segunda-feira, 21, o presidente da FEPAL (Federação Árabe Palestina), Ualid Rabah, para abordar a morte do Papa Francisco, aos 88 anos, após uma aparição inesperada na missa de Páscoa no Vaticano. O Pontífice incluiu em seu último discurso um pedido recorrente: o cessar-fogo na Faixa de Gaza.
A morte de Francisco
Vivemos hoje uma das manhãs mais dramáticas dos últimos anos, marcada pelo falecimento do Papa Francisco, que, ainda ontem, durante a participação na missa pascal — mesmo doente e com dificuldades — fez um apelo pelo cessar-fogo em Gaza.
Em diversas ocasiões, ele se referiu ao cerco e ao genocídio em Gaza dessa forma, razão pela qual chegou a ser acusado de antissemitismo — uma grande hipocrisia, não é mesmo?
Já que o Papa nos deixou hoje, é importante lembrar uma das grandes imagens do século, ou até mesmo do milênio — pois não sei até quando esta humanidade vai resistir — que é a foto da ocasião em que ele visitou a Palestina e optou por fazer uma oração com a testa prostrada no muro do apartheid. É, portanto, uma manhã muito triste para nós, palestinos, que reconhecemos o Papa Francisco como um grande defensor da paz na Palestina e um contestador da opressão ao povo palestino.
O futuro da Igreja Católica
É muito difícil medir os impactos que o Conclave pode trazer, já que não conhecemos as correlações de forças da Igreja Católica na atualidade. O que sabemos é que é pouco provável que surja outro Papa com a ousadia de Francisco.
Nos últimos séculos — ou nos últimos 1200 anos —, ele foi o único Papa não europeu, o primeiro americano. Não apenas pronunciou palavras, mas buscou implementar reformas e enfrentou publicamente muitos temas. Além disso, tentou resgatar, mesmo sem nomeá-la, a Teologia da Libertação, que foi sepultada a partir das décadas de 1980 e 1990.
Hoje, há setores dentro da Igreja Católica, principalmente vinda dos Estados Unidos, que seguramente tentarão recompor uma nova realidade mais retrógrada no Vaticano. Uma Santa Sé que silenciará diante da miséria, dos genocídios, dos armamentos, da obscenidade da extrema riqueza em contraste com a imensa pobreza e da destruição da natureza. Essas são marcas do Papa Francisco. Talvez a ocupação da Palestina tenha sido um dos grandes temas de seu pontificado — e ele jamais se calou sobre o que acontece ao povo palestino.
Os cinco minutos do Papa diante do muro que cerca Belém — cidade onde nasceu Jesus, uma das metrópoles do cristianismo primitivo — não é pouca coisa. É muito difícil imaginar que haverá outro Papa com tamanha ousadia.
A fé cristã e a Palestina
A Palestina é a terra onde nasce a mensagem cristã, onde ela evolui e se cristaliza no que conhecemos como monoteísmo — a desracialização de Deus. A experiência sionista, estrangeira e europeia, implementada pelos ingleses na Palestina, é uma tentativa de “re-racializar” Deus. Porque Jeová — nome posteriormente suavizado pela cristandade romanizada — é o “Deus dos Exércitos”, ou seja, o “Deus das Guerras” da Antiguidade. Por isso, o Velho Testamento é marcado por sucessivos genocídios. A leitura do Antigo Testamento é implacável nesse ponto.
É possível um Papa palestino?
Qual seria o problema em se ter um Papa palestino, se foi naquela terra que Cristo nasceu, e onde se desenvolveu e se fixou a ideia da desracialização de Deus? O Deus monoteísta deixou de ser um Deus étnico, e isso é algo fundamental.
Além disso, trata-se de uma terra que está sendo descristianizada. Os cristãos chegaram a representar mais de 10% da população da Palestina no início do século passado, quando começou a empreitada sionista. Há números controversos, mas alguns apontam que havia até 15% de palestinos cristãos naquele momento. Hoje, esse número não supera 2%.
Ontem, na Páscoa, vimos cristãos palestinos em Jerusalém impedidos de celebrar a data pela ocupação israelense. Em Nazaré, foi construída uma nova cidade exclusivamente judaica, cujo prefeito proíbe as comemorações de Natal.
Estamos diante de um processo de desaparecimento da cristandade na Terra Santa, onde nasceu, se desenvolveu e se consolidou o monoteísmo. Talvez, nesta era, nada fosse mais simbólico e importante do que termos um Papa palestino. Quem sabe, com isso, houvesse paz na Palestina — não apenas para os donos originários da terra, mas também para os israelenses que foram arrastados para uma empreitada colonialista e muitos dos quais talvez nem soubessem que estavam cumprindo um papel genocidário. Se tivessem a chance de escolher entre a paz e a eliminação de outro grupo humano, muitos escolheriam a paz. Quem sabe um Papa palestino pudesse promover essa escolha.
Lenço palestino no presépio do Vaticano
Todo presépio remete a Belém, à figura de Maria — uma mulher palestina — e aos pastores daquele tempo. Tudo que diz respeito ao presépio diz respeito à Palestina.
Diante do genocídio em curso, o Papa optou por demonstrar o que o Vaticano pensa e o que a cristandade deveria pensar. Ao associar Jesus à luta do povo palestino, ele fez uma declaração que poucos perceberam:
Biblicamente, há o relato de um enviado de Deus que contestaria o poder terreno de Herodes — e, por isso, Herodes ordena o massacre das crianças. O que vemos hoje na Palestina é a maior matança de crianças da história.
Colocar uma criança em uma manjedoura com um lenço — símbolo da luta nacional palestina — é contestar e refutar o maior extermínio de crianças da história, relembrando aquele menino Jesus que foi perseguido com sua família.
É significativo que o Papa tenha representado tudo isso. Hoje, na data de sua morte, temos quase 10 mil crianças exterminadas por milhão de habitantes em Gaza, vítimas de Israel e dos Estados Unidos. Durante toda a Segunda Guerra Mundial, que durou 2.190 dias, foram exterminadas 2.813 crianças por milhão na Europa sob o nazismo.Isso significa que Israel, os EUA e o Ocidente — que criou Israel — matam 3,54 vezes mais crianças em aproximadamente um quarto do tempo do que todo o período nazista.