O espetáculo “Um grito parado no ar”, escrito por Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), ressoa como um marco do teatro de resistência na época da ditadura militar brasileira. Com a direção precisa do inquieto Rogério Tarifa, a montagem se transforma em uma poderosa homenagem ao legado artístico e político de Guarnieri, amplificando as vozes que se ergueram contra os cerceamentos da liberdade, em uma época que se torna fundamental ser revisitada e desvendada ao grande público. Isso se destaca especialmente com o sucesso do longa-metragem “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, que está concorrendo em três categorias no Oscar 2025, com destaque para melhor filme — uma indicação histórica para o cinema brasileiro e as artes em geral.
A peça, em cartaz no SESC Bom Retiro, em São Paulo, até 17 de fevereiro, foi escrita em um contexto crítico e ecoa as preocupações sociais da época, fazendo com que o público se conecte diretamente com a dor e os anseios daqueles que viviam sob um regime repressivo, tentando ensaiar e estrear um espetáculo teatral no meio do furacão implacável da opressão política e limitações econômicas.
Assim, a encenação de Tarifa e da Cia. Teatro do Osso propõe um diálogo entre passado e presente, questionando as condições atuais do trabalho artístico no Brasil. O que se observa na atuação coletiva é um reflexo das lutas que continuam a existir, tornando-se uma análise pertinente e necessária da realidade contemporânea.
O contexto histórico: em 1973, fazia cinco anos desde a publicação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), e o Teatro de Arena, um dos grupos teatrais mais importantes do país no período, estava de portas fechadas. Nessa conjuntura, o já consagrado ator, diretor e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri escreve a peça “Um grito parado no ar”, entrelaçando as experiências sociais da época ao próprio ato de criação e encenação dramática.
A companhia, junto a um coro composto por trabalhadoras, trabalhadores e estudantes secundaristas, com a participação da atriz Dulce Muniz, remanescente da montagem original, interpreta a obra de Guarnieri como um ato-espetáculo musical. Ao fazê-lo, propõe reflexões e diálogos sobre o trabalho artístico na sociedade brasileira. A realização deste espetáculo se entrelaça entre duas conjunturas distintas, sobretudo no que diz respeito às condições do espetáculo, que constitui uma referência para a história do teatro nacional.
É uma linda homenagem aos que se propuseram a resistir e questionar o estado das coisas sob o manto pesado da repressão e autoritarismo aos meios de comunicação e artistas em geral, impostos pela Ditadura Militar. O elenco da montagem original de 1973 e personagens como Flávio Migliaccio, Abdias Nascimento, Heleny Guariba, Lélia Abramo, Dulce Muniz, Ruth de Souza, Carolina Maria de Jesus e Gianfrancesco Guarnieri estão representados, homenageados e reproduzidos no palco e na história.
A interpretação conjunta dos atores aponta para a urgência da voz e da arte como instrumentos de resistência. O espetáculo não se limita a retomar a memória de Guarnieri, mas oferece uma reflexão sobre o impacto da arte na construção de identidades e no fortalecimento de vozes silenciadas. Ao relembrar o passado, eles colocam em evidência a necessidade de se manter alerta frente às novas formas de censura e opressão.
O início da encenação tem um impacto emocional com a plateia e, nesse momento, se estabelece um fio condutor para o desenvolvimento do espetáculo. Os atores Oswaldo Acaleo, na pele de Euzébio, e Maria Loverra, na interpretação de Nara, conduzidos por Guarnieri, vivido por Rogério Tarifa, trazem à cena um ímpeto emocional que captura o espírito do grupo e seus personagens, suas resiliências e verdades.
A inclusão da artista africana Nduduzo Siba como parte do coro acrescenta uma relevante camada de diversidade à performance, simbolizando a união de lutas e vozes, não só brasileiras, mas de toda a diáspora africana. Sua presença em palco reitera a importância do parentesco entre as narrativas de opressão e resistência, formando um mosaico cultural de significados que atravessam fronteiras. O coro, com suas atuações vibrantes, transforma a encenação em um verdadeiro ato musical, onde as canções tornam-se gritos de liberdade.
“O ator se revolta com violência e lucidez: denuncia uma crise que esmaga o teatro brasileiro de hoje: os atores estão se trancando em um mundo abstrato, ridículo, individualista, vazio, fechado. Os atores de ‘Um grito parado no ar’, como muitos atores e diretores do nosso movimento teatral, buscam em si a apreensão de uma realidade que está fora deles. Não é através de laboratórios herméticos e de exercícios corporais e espirituais abstratos que o ator conseguirá trazer para o palco a vida de um operário. É o mesmo Guarnieri de antes, fiel a seus primeiros compromissos, mas transformado, dilacerado, pela experiência histórica de seu povo”, escreveu Fernando Peixoto, diretor da montagem em 1973.
“Um grito parado no ar” se estabelece como um lançamento ao futuro, ao mesmo tempo em que homenageia um passado de luta e sofrimentos. Mantendo vivas as vozes de todos aqueles que, ao longo da história, se levantaram para exigir um mundo mais justo e libertário.