Armínio Fraga defendeu a democracia, fez discursos e deu entrevistas contra as ameaças totalitárias que abalavam a confiança na economia e até propôs o aumento de impostos para os ricos. Tudo às vésperas da eleição de 2022.
Abriu o voto para Lula, atraiu outros liberais célebres para a sua campanha pelo petista e logo depois, em poucos meses, passou a falar mal de Lula e do governo. Agora, defende o congelamento do salário mínimo.
Os liberais brasileiros e o povo que vota têm coisas em comum, e uma delas é a dissonância entre o que parecem pensar e parecem dizer e o que acabam fazendo. Algum elo se rompe entre suas ideias e atitudes.
Que elo foi quebrado desde a mobilização dos liberais liderados por Armínio (e não foram poucos) em apoio a Lula, ou contra Bolsonaro, e as mais recentes sabotagens a Lula e ao governo?
O que deixou de acontecer, na expectativa deles, que os levou de volta ao lugar onde estavam? A novela do arcabouço fiscal explica tudo? A expectativa de que Lula pudesse ser um liberal no terceiro governo?
Agora, pense na situação do que ainda chamam genericamente de povo. O que faz com que o brasileiro eleja a maior base ultraconservadora e extremista do Congresso e, algum tempo depois, em voz alta, em pesquisas, diga coisas que não combinam com o que fez na eleição?
A eleição disse que o povo queria líderes no Congresso defendendo boi, bala, Bíblia, tudo gente da era popcorn and ice cream. Mas pesquisas de agora, sobre situações recentes, indicam que, diante de decisões dramáticas, o povo caminha em outra direção.
São números de pesquisas do Datafolha: 56% são contrários à anistia aos terroristas e manés do 8 de janeiro; 59% acham que as penas impostas a eles são adequadas ou deveriam ser aumentadas (somadas as duas alternativas); e 52% entendem que Bolsonaro deveria ser preso.
O mesmo Datafolha informa que 76% dos brasileiros são favoráveis ao aumento da tributação para os ricos. Mas dois terços do Congresso que eles elegeram fingem, em algumas situações, pensar coisas semelhantes e no fim contrariam seu povo.
Contra o povo, prosperam no Congresso o plano da anistia para os golpistas e a articulação para sabotagem da proposta do governo de tributação dos ricos, para que a isenção do IR chegue a quem ganha até R$ 5 mil.
Direita e extrema direita se desconectam do que o brasileiro diz nas pesquisas, para que o Congresso salve, não os manés, mas Bolsonaro, e mantenha privilégios dos milionários. Em nome, é o que dirá Nikolas Ferreira no tiktok, dos interesses do povo.
O brasileiro que fala nas pesquisas não tem correspondência com aquele que falou na eleição para o Congresso. E, nas próximas eleições, pode repetir tudo de novo, para reafirmar essa desconexão entre as vozes das pesquisas e as vozes das urnas.
Armínio Fraga e o brasileiro poderiam se encontrar num bar, sem pressa, e pedir uma Brahma sem álcool, para saber o que ambos pensam disso tudo. Armínio poderia dizer que Lula o frustrou porque não foi rigoroso na gestão fiscal, o que o povo não entenderia direito, mas fingiria que entende.
E o povo diria a Armínio que elegeu o pastor, o delegado, o grileiro, o coronel, o fazendeiro, os amigos dos milicianos e os que se apresentam apenas como fascistas, porque eles estão mais próximos das pessoas que votam e porque são mais convincentes e sedutores.
O povo, mesmo o ultraconservador e o terrivelmente evangélico, dirá ao cruel Armínio que o que diz nas pesquisas não é bem o que decide quando vota, porque a vida dá voltas e é preciso estar com quem tem Deus acima de tudo.
E Armínio poderia reafirmar que uma fala em eventos sob forte emoção, como a que aconteceu na USP em 2022 em defesa da democracia, é diferente de uma fala sob forte racionalidade em Harvard, em defesa do mínimo congelado.
O Armínio que repetiu várias vezes, naquele ano de 2022, que o Brasil precisava tributar os ricos é o mesmo que diz agora que o país será salvo se congelar o salário dos pobres mal pagos. Só as falas são diferentes.
Enquanto isso, empresários gaúchos se mobilizam, como se fossem milícias ameaçadoras, para que o governo aperte quem está recebendo o Bolsa Família. Com o argumento de que o brasileiro desistiu de aceitar empregos de salário mínimo porque prefere viver com R$ 600 por mês. Que Lula corte a ajuda.
É esse o cenário, às vésperas da votação da anistia que o povo não quer, da sabotagem à isenção de renda de até R$ 5 mil, que o povo deseja, e da preparação do ambiente para que Bolsonaro, se for condenado, não seja preso, mesmo que o povo queira vê-lo encarcerado.
O povo, que vota contra si mesmo, e os liberais, que fingem desilusões com ilusões que não deveriam ter em relação a Lula e até em relação ao congelamento do salário mínimo, continuam nos confundindo.
E as esquerdas? As esquerdas estão congeladas há muitos anos e também não falam crá com cré, mas aí a conversa pode durar mais tempo do que a operação de Bolsonaro.
Originalmente publicado no Blog do Moisés Mendes
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