Desde o início de julho, réus, acusados e investigados por envolvimento em atividades ligadas às facções passaram a ser julgados de forma centralizada em um único tribunal em Santa Catarina. Localizada na capital, Florianópolis, a nova Vara de Estadual de Organizações Criminosas (Veoc) começa com 2 084 processos, sendo quase 1 400 deles trazidos de comarcas do interior e do litoral, entre ações penais, inquéritos policiais, medidas cautelares e de investigação e outros procedimentos. Nenhum desses suspeitos, no entanto, verá o rosto de um juiz sequer. A nova corte terá cinco magistrados, que conduzirão os trabalhos exclusivamente de forma virtual, com imagens e vozes distorcidas para evitar que sejam identificados — não será possível nem mesmo saber se o juiz é homem ou mulher. Também não se saberá o nome do magistrado — as decisões serão tomadas em formato colegiado, ou seja, de responsabilidade dos cinco membros.
Os responsáveis pela iniciativa defendem o modelo diante da escalada, incontestável, da ousadia e periculosidade das facções criminosas. Muito antes de chocar o país com uma onda de atentados nas ruas em maio de 2006, que deixou mais de 500 mortos em São Paulo, incluindo 59 agentes públicos, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) mostrou as suas credenciais ao assassinar a tiros, em março de 2003, o juiz Antonio José Machado Dias, responsável pelas execuções penais da região de Presidente Prudente, durante uma emboscada a 300 metros do fórum onde despachava. O caso foi tratado como o primeiro assassinato de uma autoridade do Poder Judiciário por uma organização criminosa no país. “Muitos servidores foram atemorizados, juízes ameaçados. Concentrando magistrados na capital, temos condições efetivas, com o apoio do sistema de segurança, de dar segurança ao nosso servidor”, afirma Luiz Antônio Zanini Fornerolli, corregedor-geral do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Segundo ele, a medida vai ajudar na elucidação dos crimes. “Aumenta a qualidade e a celeridade”, defende.
O sistema, inédito no país, já provoca oposição em parte da comunidade jurídica, que vê inconstitucionalidade e cerceamento ao direito de defesa. A lista de problemas apontados pelos críticos não é pequena. “A existência de magistrados sem nome, sem assinatura, que não se sabe de onde vieram ou se, de fato, estão presentes em audiências, é um escândalo jurídico”, diz, em nota, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim). Segundo a entidade, o modelo de “juiz sem rosto” e “sentenças apócrifas” impede os acusados de terem um julgamento por um tribunal competente, independente e imparcial, e veta eventuais arguições de suspeição e impedimento. “Ter conhecimento de quem acusa e de quem julga é uma providência elementar de qualquer processo”, completa. Embora lamente que agentes públicos se sintam acuados no exercício de suas funções e tenham que correr ao anonimato, o professor Fabrício Duarte, mestre em direito público pela PUC Minas, concorda. “A medida é inconstitucional porque viola o princípio da transparência, que deve orientar o exercício do poder estatal como um todo, inclusive o juiz”, afirma. “Tanto é que a Constituição estabelece que os julgamentos são públicos, podendo a lei limitar o acesso das informações a terceiros em alguns casos, como garantia do direito à intimidade, mas nunca à parte”, explica.
A tentativa de proteger juízes do crime organizado no Brasil não é nova, embora nunca tenha chegado ao magistrado sem rosto. Em 2003, um projeto do senador Hélio Costa criava o instituto do “juiz anônimo”, mas a ideia foi sepultada rapidamente. Em 2012, no governo Dilma, foi sancionada a Lei 12.694/2012, que autoriza a formação de colegiados para julgar casos envolvendo o crime organizado, que inspirou Santa Catarina. Varas especializadas têm se tornado cada vez mais comum, principalmente em locais onde as facções avançaram, como Rio de Janeiro, Bahia e Ceará, mas nenhuma chegou ao ponto catarinense. Países vizinhos também já testaram sem sucesso o modelo. O caso mais conhecido é o da Colômbia, que adotou o sistema após o ataque empreendido pelo grupo guerrilheiro M-19 ao Palácio da Justiça, em 1985, que deixou 100 mortos, incluindo doze juízes — há suspeita de que a ação tenha sido financiada pelo narcotraficante Pablo Escobar. O país adotou os “julgamentos anônimos”, que, sob críticas de organismos internacionais, foram declarados inconstitucionais pela própria Justiça colombiana em 2000. Na Itália, onde ocorreu um dos casos mais célebres — o assassinato do magistrado Giovanni Falcone em um atentado com dinamite executado pela máfia Cosa Nostra —, medidas do tipo nunca foram concretizadas também sob o argumento de ilegalidade.
O crescente poderio das facções e a necessidade incontornável de debelá-lo exigem ação urgente e enérgica das autoridades. Para isso, é preciso que todos os agentes públicos envolvidos tenham a segurança garantida, sejam juízes, promotores ou policiais. Isso, no entanto, deve respeitar o processo legal e o ordenamento constitucional. O caso de Santa Catarina cria um novo capítulo nessa discussão.