O jurista Lenio Streck afirmou, em artigo de opinião publicado na Folha de S.Paulo, que a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não deixa dúvidas sobre a tentativa de golpe de Estado. Ele também destacou que negar a trama golpista do 8 de janeiro é “alimentar o senso comum contra o direito”.
Confira alguns trechos:
(…) O Holocausto existiu. O homem pousou na Lua. Em 1964 houve um golpe no Brasil. Vacinas não causam autismo. Não é razoável negar esses fatos. Lembram de Carla Zambelli postando que a “Havan era da filha da Dilma”?
E a tentativa de golpe de 8 de janeiro? É razoável negar? É possível construir narrativa negando o fenômeno? É possível dar às coisas o nome que queremos?
A ver. Depois de dois anos, surgiu a denúncia, uma peça técnica de acusação. São 34 envolvidos, dos quais um é o ex-presidente Jair Bolsonaro, com a acusação de cinco crimes, dois deles inéditos no Brasil: tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático. (…)
Temos, assim, revelações oriundas de inquérito e delação premiada, um conjunto de elementos que, segundo Paulo Gonet, demonstram o cometimento dos crimes de organização criminosa, dano patrimonial, deterioração, tentativas de golpe e de abolição.
Há minutas do golpe, as reuniões de Bolsonaro com ministros de Estado e comandantes das Forças Armadas para falar sobre golpe, a participação dos kids pretos no 8/1, a disseminação articulada sobre fraude nas eleições, o monitoramento e o plano para matar o presidente eleito, Lula (PT), o vice, Geraldo Alckmin (PSB), e um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Alexandre de Moraes.
Sobre a tomografia dos atos que culminaram no 8/1 —vejam que uso a expressão culminaram, porque já possuíam existência jurídica própria independentemente do 8/1—, a denúncia mostra que a organização criminosa seguiu todos os passos necessários para depor o governo eleito. Objetivo que, buscado com todo empenho e realizações de atos concretos em seu benefício, não conseguiu, porém, alcançar o intento. (…)
Se alguém planeja assaltar um banco, compra material, faz um plano e desiste, nem tentou assaltar, porque foram só atos preparatórios, não puníveis. Correto.
No entanto, esse raciocínio não pode ser aplicado ao crime de tentativa de golpe. No senso comum, os atos de planejamento, campana, mapeamento etc., no caso de não ter havido o golpe, são como “o caso do assalto ao banco”. Portanto, não deveriam ser punidos.
Pois é aqui que o senso comum precisa da ciência jurídica: a isso se chama de “crimes de empreendimento”. O tentar já é o consumar. Só pensar em fazer um golpe não é crime; porém, começar a fazer qualquer coisa para tentar o golpe já incrimina o agente.
Essa dificuldade de compreensão faz surgir lendas que vitaminam a negação do golpe. Muitas das condutas, tomadas individualmente, são ações neutras, mas, no conjunto, constituem início de execução de tentar derrubar o governo eleito. Há um conjunto da obra.
Há mais. O fato de não precisarmos esperar o golpe para dizer “isso foi golpe” é uma questão de lógica. No direito, em alguns casos se antecipam as barreiras da punição, porque, de antemão, as condutas já são consideradas perigosas para o bem jurídico, isto é, tanto faz que a pessoa realize todo o caminho do crime para que ocorra a punibilidade. Por isso, a lógica: só se pune a tentativa —como crime consumado. (…)
De novo, a ciência. Há coisas em direito que, julgadas, tornam-se incontroversas. Direito é assim. Isso deveria esclarecer lendas. Por exemplo, o uso da palavra suposto por parte da imprensa. No caso, há um equívoco que ajuda a criar negacionismos.
Já não há suposta tentativa. E isso por uma razão técnico-jurídica que não depende de desacordos: nos mais de 380 processos julgados, o STF já afirmou a existência da tentativa de golpe. Causa finita. Já não é mais uma questão de opinião. (…)
Assim, há fatos. Incontroversos. O que resta agora é saber, apenas, qual foi a participação de cada um dos 34 denunciados. Isso sim é discutível. Denúncia não é sentença. Muita calma. Esperemos o devido processo legal. Assim é o direito. (…)
O 8/1 é produto de relativismos de todos os tipos, mas sobretudo da relativização dos limites da hermenêutica jurídica. Vejam-se as patacoadas do artigo 142 e a nota de 11/11. (…)
Como se demonstram os fatos? Esse é o grande desafio contra o senso comum. Dar às coisas os nomes certos.
Como se prova que quem invade poderes da República —e quem incentiva, e quem arquiteta, e quem financia— tentou dar um golpe? Há vídeo, cadernos, planos impressos, áudios.
O Brasil, porém, está disposto a dizer o nome da coisa?
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