
O reino dos “imortais”, que conseguiram cobiçado assento em Academias sérias – aquelas que não abrem vaga de pessoa viva – não está poupado de mal-entendidos. A crônica histórica da mais festejada dentre as Academias, a Brasileira de Letras, criada em 1897 por Machado de Assis, é um instigante mostruário de como intelectuais também se perdem nas insignificâncias.
O “Diário Secreto” de Humberto de Campos é um arsenal com inúmeros episódios a evidenciar essa característica do comportamento de quem deveria estar acima de qualquer coisa de menor interesse, que nunca incomodaria personalidades superiores e presumivelmente insuscetíveis de tais pequenezas.
Num deles, o narrador conta que, ao verificar a ausência da maioria dos acadêmicos, lamentava principalmente a falta que faziam os integrantes da Comissão do Dicionário. A ABL se autoproclamou responsável pela língua portuguesa e uma das primeiras providências foi nomear Comissão de imortais encarregada de elaborá-lo, publicá-lo e divulgá-lo no Brasil inteiro.
Ao mencionar os encarregados faltantes, enunciou os nomes de Júlio Ribeiro, Laudelino Freire e Medeiros e Albuquerque. Só que um funcionário da Academia, que ouvira mal o que Humberto de Campos dissera, contou a Medeiros que ele havia sido desabridamente atacado, com acusação de desmazelo e desinteresse em relação ao trabalho de que havia se incumbido.
Com o intuito de prestar serviços a Medeiros e Albuquerque, o servidor abusou na qualificação e reconstituiu uma frase mais do que descortês. Poderia ensejar uma ação privada contra a honra, se naqueles tempos já houvesse a epidemia de beligerância que assolou o Brasil depois da Constituição de 5.10.1988.
Na sessão seguinte, chega Medeiros à Academia munido de um maço de páginas datilografadas, nas quais se defendia da acusação e afirmando que Humberto de Campos não tinha moral para dar lições de assiduidade. Pois, na condição de deputado, preferia comparecer às sessões acadêmicas e faltava à Câmara, traindo a confiança dos seus eleitores. Terminou por renunciar à sua missão junto à elaboração do Dicionário e indicava, para substituí-lo, exatamente o antagonista Humberto de Campos.
Este assistiu impávido à amarga exposição de Medeiros e Albuquerque, pedindo a palavra logo depois. Embora ouvisse exaltado a exposição contra sua pessoa e suposta ofensa, sentiu que, nesse momento, “o coração, que me batia apressado, serenou, como um leão que se recolhe à sua jaula. A angústia com que eu escutava aquela defesa que a verdade transformava em agressão, mudou-se, como por milagre, em coragem, em energia, em desassombro. E comecei assim:”
“Entre as anedotas atribuídas ao nosso eminente e inesquecível Carlos de Laet, há uma, Senhor Presidente, cuja referência se torna, neste momento, oportuna. Conta-se que aquele nosso Mestre costumava dizer, nas rodas de amigos e companheiros, que habituado a discutir com toda a gente, só havia um homem com o qual ele não queria debater. Era Medeiros e Albuquerque. E acrescentava, textualmente”:
“O Medeiros é surdo, e eu sou cego. O Medeiros faz um gesto inconveniente, e eu não vejo; eu digo um desaforo, e o Medeiros não ouve…. É nessa situação que eu me encontro neste momento. Porque, se o Medeiros e Albuquerque não fosse surdo, ou se tivesse dado ao trabalho de, ao entrar nesta casa, passar os olhos pela ata da sessão anterior, cuja leitura não ouviu, estou certo de que Sua Excelência não teria incorrido na prática da injustiça e da incivilidade de que me acaba de fazer vítima”.
Passou então a explicar o caso com veemência. E só havia citado, incidentemente, o nome de Medeiros e Albuquerque, sem realce maior em relação aos demais membros da Comissão do Dicionário. À medida em que se explicava, com serenidade, os ânimos do pretenso desafeto se aquietavam também.
Ao terminar a explanação, Humberto de Campos experimentou mais uma vez a força desconhecida que havia nele e que o socorria nos improvisos. Todos os confrades foram cumprimentá-lo. A Academia inteira, nesses abraços e apertos de mão, ficou ao seu lado. Reconheceram a sinceridade e fizeram Justiça.
Quanto a Medeiros e Albuquerque foi um cavalheiro. Estendeu-lhe a mão e confessou estar convencido de que fora mal-informado. Declarou que retirava tudo quanto escrevera e pediu desculpas para desfazer o equívoco. Abraçaram-se e continuaram irmãos.
Algo que deve servir ainda hoje, para desfazer intrigas, pequenos incidentes que, lamentavelmente, continuam a ocorrer, mesmo no Olimpo daqueles que alcançaram a culminância da imortalidade acadêmica.


