O mercado imobiliário passa por uma transformação silenciosa: o financiamento para a construção de imóveis, historicamente dominado pelo crédito subsidiado via poupança no Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), está captando cada vez mais recursos no mercado de capitais. Com a fuga de recursos da poupança desde 2021 e a consequente restrição do crédito imobiliário tradicional, construtoras e incorporadoras passaram a buscar alternativas, como CRIs, LCIs e FIDCs, para financiar seus projetos de edifícios corporativos ou residenciais de alto padrão e luxo.
Hoje, o financiamento para o setor funciona assim: o dinheiro que o consumidor aplica na poupança é remunerado a uma taxa menor do que o CDI (que segue a taxa Selic) e esse capital é utilizado para financiar o mercado imobiliário, tanto do lado das construtoras quanto do lado dos consumidores que compram imóveis.
Com a redução dos recursos disponíveis na poupança e a demanda aquecida por imóveis no mercado nacional, os bancos têm priorizado o crédito ao consumidor. Nesse cenário, a participação do crédito originado na poupança para as construtoras diminui, enquanto o mercado de capitais ganha relevância como fonte de financiamento para projetos imobiliários.
Esse cenário abriu uma nova avenida de lucro para gestores de fundos, securitizadoras e bancos de investimento, especialmente aqueles ligados ao polo financeiro da Avenida Faria Lima, em São Paulo.
A ascensão das plataformas de investimento, como XP, BTG e Nubank, estimulou os investidores brasileiros a diversificar a alocação do seu capital, saindo da poupança para ativos mais sofisticados, como Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs), Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) e Letra de Crédito Imobiliário (LCIs), por exemplo − todos ligados ao mercado imobiliário. Mesmo no cenário de juros altos, esses ativos continuam a atrair investidores.
Segundo o presidente da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), Sandro Gamba, nos últimos anos, o financiamento para construção vindo do mercado de capitais passou de 30% para 40% na representatividade na composição do crédito (o restante vem da poupança e do FGTS).
Para Gamba, o aumento do crédito do mercado de capitais é um movimento importante e necessário no cenário atual do financiamento imobiliário no Brasil, especialmente considerando a redução da participação dos recursos da poupança.
“Para demandas de ciclo longo, que é onde se enquadra o financiamento da pessoa física, vai ter o direcionamento de recursos da poupança. Para o ciclo curto, temos visto que o financiamento terá uma diminuição dos recursos da poupança e um crescimento do mercado de capitais”, afirma.
Na Finamob, empresa de originação e estruturação de crédito para incorporadoras, a expectativa é atingir R$ 1 bilhão em operações financeiras em 2025. O número representará um salto na comparação com 2024, que fechou em R$ 320 milhões. A empresa tem parcerias com gestoras institucionais e butiques de gestão de fortunas que financiam projetos imobiliários, capital que é usado como crédito para as incorporadoras.
Para Murilo Marchesini, sócio-fundador da Finamob, o aumento do financiamento de projetos via mercado de capitais é um caminho sem volta. “Há meses que o mercado de capitais já é o líder do financiamento. Hoje, o mercado de capitais tem R$ 300 bilhões em FIIs e a poupança tem um pouco mais de R$ 800 bilhões. Mas, em alguns meses, o mercado de capitais acaba financiando mais”, afirma Marchesini.
O executivo vê o uso de recursos do mercado de capitais como a principal fonte de empreendimentos imobiliários no futuro, o que seria um passo importante para o mercado. Ele é contra estruturas subsidiadas criadas pelo governo para financiar o setor.
Murilo Marchesini, sócio-fundador da Finamob Foto: Divulgação/Finamob
“O mercado tem de andar com as próprias pernas de uma maneira que equilibre o retorno do investidor e a conta para o incorporador. Todos os países do mundo desenvolvidos já têm isso equilibrado. No Brasil, devido à montanha-russa da Selic, esse equilíbrio é o que parece mais razoável no longo prazo”, diz.
Já a gestora de recursos Multiplike, que oferece crédito ao mercado imobiliário por meio de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs), ofereceu R$ 2,5 bilhões no ano passado e a cifra deve crescer mais neste ano. A empresa projetava um valor de R$ 1,5 bilhão para 2025 no começo do ano, mas precisou rever os números para cima em abril devido à demanda do mercado. A projeção agora é fechar o ano com R$ 3,5 bilhões.
De acordo com Volnei Eyng, presidente da Multiplike, os clientes da gestora são construtoras de todo o País, com um número relevante de construtoras em São Paulo e também na região Nordeste. “Temos clientes antigos e somos bem conhecidos no Nordeste”, afirma.
Volnei Eyng, presidente da Multiplike, estima que empresa atingirá R$ 3,5 bilhões em crédito para o setor imobiliário em 2025 Foto: Divulgação/Multiplike
Na ponta para o investidor, que aplica o capital oferecido como crédito para as construtoras, Eyng conta que o perfil é composto por investidores pessoas físicas, escritórios de gestão de fortunas (chamados Family Offices) e fundos de previdência institucionais. O valor médio investido é de R$ 1 milhão e o rendimento do FIDC é de 115% a 120% do CDI.
O crédito obtido a partir de CRIs, LCIs e outros produtos de renda fixa costumam custar o valor do CDI (hoje em 14,15%) e mais uma taxa de 4% ou mais. Ou seja, na prática, o crédito para incorporadoras e construtoras fica mais caro, elevando o custo do empreendimento − o que pode reduzir a margem de lucro do negócio ou acarretar preços mais altos para o consumidor que compra um imóvel.
Por isso, Ana Maria Castelo, coordenadora de projetos da construção do FGV/Ibre, afirma que o mais comum é ver projetos voltados ao público de alta renda ou corporativo recebendo esses recursos, apesar de projetos acima do teto do programa Minha Casa Minha Vida também utilizarem parte desses valores captados no mercado.
“Com o custo do crédito como está hoje, para viabilizar o produto captando a um custo mais alto, não é qualquer valor de imóvel que vai caber no final da equação. O construtor trabalha com o limite superior da média-alta renda e com a alta renda”, afirma.
Além do investimento direto em CRIs e LCIs, que são produtos de renda fixa, o crédito imobiliário viabilizado pelo mercado de capitais chega ao investidor pessoa física também por meio dos fundos imobiliários. Atualmente, mais de 2,7 milhões de brasileiros investem em FIIs.
Evandro Buccini, sócio e diretor de gestão de crédito e multimercado da Rio Bravo, explica que os fundos imobiliários são produtos financeiros mais sofisticados do que a poupança, uma vez que retém os recursos das captações primárias e as vendas das cotas ocorrem no mercado secundário, evitando a grande oscilação natural que a poupança tem quando as pessoas sacam seus recursos no dia a dia.
Segundo Buccini, as dívidas do setor imobiliário são agrupadas em CRIs, LCIs e outros, formando o que o mercado chama de recebíveis, que são contratos de dívidas com lastro imobiliário. Por exemplo, em uma propriedade de R$ 1 milhão, o crédito concedido é de 60% do valor, de modo a ter uma garantia do valor caso o imóvel vá a leilão, onde é vendido com desconto sobre o preço de mercado.
Buccini diz que o pagamento de dividendos, isentos de imposto de renda, é um dos principais atrativos para os investidores brasileiros. Os valores, normalmente, são pagos mensalmente aos cotistas dos FIIs, e esse capital pode ser utilizado para fazer compras ou pagar contas, ou então reinvestido para aumentar o patrimônio financeiro. Na Rio Bravo, os principais fundos de recebíveis são o RBHG e o RBHY, que tiveram dividendos de 15% nos últimos 12 meses.
Poupança
O financiamento imobiliário com recursos da poupança ainda é dominante, mas o crédito vindo dessa fonte não acompanha o ritmo de crescimento do mercado imobiliário, deixando a brecha para o mercado de capitais entrar na composição do crédito para as construtoras.
Segundo dados da Abecip, em 2024, por exemplo, a poupança teve captação líquida negativa de R$ 21,7 bilhões, enquanto o valor financiado com recursos da poupança foi de R$ 186 bilhões, um salto de 22% ante 2023. Desse valor, R$ 50 bilhões foram para as construtoras, e o restante foi para crédito ao comprador.
Para este ano, a Abecip estima que o valor financiado via poupança seja um total de R$ 150 bilhões a R$ 160 bilhões, abrangendo construtoras e consumidores.
Gamba, da Abecip, em 2024, conta que os recursos da poupança destinados ao setor de construção totalizaram R$ 50 bilhões, enquanto o restante veio do mercado de capitais e do FGTS (no caso de moradias para a baixa renda).
Porém, no começo do ano passado, o Conselho Monetário Nacional (CMN) mudou as regras para o financiamento via LCIs, aumentando o prazo de vencimento dos títulos de três para 12 meses.
Para Gamba, isso prejudicou a captação de recursos, uma vez que o investidor que mantém o dinheiro aplicado por um ano deve ser melhor remunerado, encarecendo o crédito. Em agosto, o prazo foi reduzido para nove meses, mas a Abecip e o mercado imobiliário como um todo ainda tentam restabelecer junto ao governo o prazo de três meses para atender à demanda de crédito das construtoras.