O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino indicou que, em 2026, o tribunal deverá discutir a constitucionalidade das emendas parlamentares impositivas, aquelas que obrigam o governo federal a pagar os recursos indicados por deputados federais e senadores.
A movimentação intensifica o tensionamento entre o STF e o Congresso Nacional, especialmente em ano eleitoral, e ocorre em meio ao avanço de operações autorizadas pelo ministro contra parlamentares e ao julgamento de congressistas investigados por desvios de recursos do orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão.

Flávio Dino, relator de boa parte dos casos relacionados ao orçamento secreto Foto: Wilton Júnior/Estadão
Dino concentra sob sua relatoria quatro ações relacionadas ao uso de emendas parlamentares. Os processos tiveram início com discussões sobre rastreabilidade e transparência dos recursos e evoluíram para o exame de questões constitucionais mais amplas, entre elas as emendas impositivas, modalidade criada em 2015, quando a Câmara dos Deputados era presidida por Eduardo Cunha.
O modelo obriga o governo a executar dois tipos de emendas: as individuais, às quais todos os deputados e senadores têm direito, e as de bancada, indicadas de forma coletiva por parlamentares de um mesmo Estado.
A centralização desses processos levou o ministro a ser visto, nos bastidores, como uma espécie de “Xandão das emendas”, em referência a Alexandre de Moraes, hoje relator das ações que envolvem o ex-presidente Jair Bolsonaro no STF.
Desde então, Dino adotou uma série de medidas que passaram a desagradar a maioria dos deputados e senadores, entre elas o bloqueio da execução de emendas impositivas por falta de transparência e a convocação de uma audiência pública no Supremo para discutir a constitucionalidade desse modelo.
Em 5 de dezembro, Dino afirmou que a existência das emendas impositivas “é um debate fundamental em um país presidencialista” e que a impositividade “diz respeito à separação de Poderes, aos freios e contrapesos”. Sobre a data do julgamento, o ministro disse que a definição caberá ao presidente do STF, Edson Fachin. As declarações foram feitas durante o 4º Congresso Internacional dos Tribunais de Contas.
No mesmo dia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também voltou a criticar o avanço das emendas parlamentares impositivas. Durante a 6ª reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável (CDESS), o Conselhão, Lula classificou como um “grave erro histórico” o que chamou de “sequestro” do Orçamento pelo Congresso Nacional.
Desde 2015, o montante pago pelo governo em emendas individuais passou de R$ 44 milhões para R$ 23,2 bilhões, em 2025, um aumento de 527 vezes.
As declarações ocorreram no contexto da aprovação, pelo Congresso, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que estabelece as bases para a elaboração do Orçamento do ano seguinte. O texto fixa um calendário para o pagamento das emendas parlamentares e obriga o governo a quitar ao menos 65% dos recursos antes do início do período eleitoral.
No domingo, 21, Dino mostrou que nem mesmo no recesso do Judiciário vai aliviar o tratamento duro que vem emprestando ao assunto. Ele suspendeu a validade do projeto de lei que autoriza a liquidação até o fim de 2026 de restos a pagar inscritos a partir de 2019, mesmo aquelas já cancelados.
Para Dino, a proposta significaria, na prática, nova autorização às chamadas “emendas de relator”, que ficaram conhecidas como “orçamento secreto”.
A decisão foi tomada a partir de uma ação ajuizada pela Rede Sustentabilidade. Segundo dados apresentados pelo partido, dos aproximados R$ 1,9 bilhão em restos a pagar de emendas parlamentares inscritos no orçamento desde 2019, cerca de R$ 1 bilhão corresponde a restos a pagar decorrentes de “emendas de relator”.
Paralelamente ao debate institucional, a Polícia Federal vem deflagrando operações autorizadas por Dino para apurar suspeitas de desvios de recursos por meio de emendas parlamentares. Entre elas, uma ação que cumpriu mandados de busca e apreensão contra Mariângela Fialek, conhecida como Tuca, assessora do ex-presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL).
Na última sexta-feira, a Polícia Federal fez uma nova operação que mirou dois deputados do PL do Rio de Janeiro: Sóstenes Cavalcante, líder do partido na Câmara, e Carlos Jordy. Segundo a corporação, assessores dos dois movimentaram R$ 18 milhões e operavam desvios. Os dois negaram irregularidades e apontaram perseguição. Atualmente, tramitam no Supremo mais de 80 investigações envolvendo parlamentares relacionadas a suspeitas de desvio de recursos públicos.
No campo político, a atuação de Dino enfrenta críticas no Congresso. Parte dos parlamentares ouvidos pelo Estadão avalia que as decisões do ministro extrapolam o papel do Supremo ao impor limites ao uso das emendas parlamentares.
Entre as vozes críticas está o líder do PSDB no Senado, Plínio Valério (AM). ”A decisão do ministro extrapolou o que ele poderia fazer, até porque Dino foi deputado, foi governador. Quando deputado, fez uso das emendas; como governador, as emendas ajudaram muito, e ele sabe como as coisas são conduzidas. Se ele suspeitava de algo, deveria ter agido sobre casos específicos e não de forma generalizada, bloqueando inclusive emendas impositivas, que são garantidas pela Constituição.”
Para esse grupo, as regras mais rígidas de transparência e rastreabilidade impostas às emendas, somadas agora à discussão sobre a constitucionalidade das emendas impositivas, atendem aos interesses do Planalto e servem para que o governo Lula retome o controle sobre a destinação dos repasses federais, em uma leitura de atuação coordenada entre Executivo e Judiciário. Dino foi indicado ao Supremo por Lula em 2023, argumento frequentemente citado por parlamentares críticos à sua atuação.
Há, contudo, apoio às decisões do ministro. A deputada federal Adriana Ventura (Novo-SP) avalia que Dino tem tomado as decisões corretas sobre o tema. “Ao cobrar transparência e apurar irregularidades, Dino faz o que é esperado de um ministro do STF. É um freio de arrumação”, afirma.
Já o deputado federal José Rocha (União-BA) considera acertada a atuação do ministro ao “exigir mais rastreabilidade nos repasses”. Ambos prestaram depoimento à Polícia Federal no âmbito da investigação e forneceram informações que embasaram o inquérito contra Tuca.
Especialistas em contas públicas também defendem a atuação de Dino. Economista-chefe da Warren Investimentos e participante da audiência pública convocada pelo ministro, Felipe Salto avalia que as medidas adotadas caminham na direção correta ao enfrentar o volume crescente das emendas impositivas no Orçamento.
“Não há cabimento em ter um volume tão elevado de despesas que se tornaram, na prática, obrigatórias”, afirma.
A leitura é compartilhada pelo pesquisador da PUC-Rio em gestão pública e responsável pelo desenvolvimento da Central das Emendas, Bruno Bondarovsky, que avalia que o ministro age corretamente ao levantar o tema da constitucionalidade das emendas impositivas.
“O que ficou evidente nos últimos dez anos, com o aumento contínuo do volume de verbas é que a impositividade abriu a porta de Pandora, trazendo desequilíbrio entre os entes, redução da transparência e comprometimento do planejamento”, diz
Para o cientista político Leandro Cosentino, ao levar a discussão ao Supremo, Dino desloca para o Judiciário um dos pilares do pacto político firmado a partir de 2015, abrindo a possibilidade de revisão de um modelo que alterou o equilíbrio entre Executivo e Legislativo.
“Em ano pré-eleitoral, a entrada definitiva do STF nesse terreno faz com que a Corte mexa em um ‘vespeiro’ e tende a aprofundar o conflito institucional, além de redefinir os limites do poder orçamentário no País”, diz.


