Uma combinação perversa pode forçar o Brasil a antecipar uma nova reforma da Previdência. Além do envelhecimento acelerado da população brasileira, que amplia a demanda pelo benefício, as transformações no mercado de trabalho, com o avanço dos aplicativos, e as preferências da Geração Z em busca de mais flexibilidade e qualidade de vida, colocam mais pressão sobre a Previdência Social.
O reflexo é um desequilíbrio crescente no sistema brasileiro com a redução da base de contribuintes formais. A conta fica mais difícil de fechar. Isso porque o Brasil desenhou um modelo no qual quem está no mercado de trabalho contribui para pagar o benefício de quem já está aposentado. Com menos trabalhadores contribuindo, há menos recursos para pagar uma quantidade de beneficiários da Previdência Social que deve crescer daqui em diante. Sem mudança, o risco é de um colapso do modelo atual.
Nesse cenário, o debate envolvendo uma nova reforma deve se acentuar, sobretudo diante da situação cada vez mais delicada das contas públicas do Brasil. Na avaliação de especialistas, o próximo governo não deve escapar de alterar as regras − ainda que parcialmente − do sistema de aposentadoria do País, cuja última reforma ocorreu em 2019.
“A degradação da Previdência se acentuou, o que faz com que haja uma antecipação da discussão da reforma”, afirma Paulo Tafner, economista e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social.
Na avaliação de Tafner, repetir fórmulas antigas de reforma da Previdência, como aumentar a idade mínima, não será mais suficiente. O Brasil, afirma, “terá de enveredar por outros caminhos.”
“Vamos ter de criar um sistema de capitalização. Essa é a primeira coisa. A segunda é que a gente vai ter de ampliar a contribuição da Previdência. A contribuição exclusivamente sobre as relações de trabalho formais não será suficiente. Vamos ter de criar um mecanismo de tributar a renda, não apenas a relação do trabalho”, acrescenta.
Brasil deve precisar de novas alterações na Previdência Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
O professor do IDP e da Universidade de Lisboa, José Roberto Afonso, concorda com a visão de Paulo Tafner. Segundo ele, o Brasil precisa de uma reforma previdenciária abrangente, que vá além do foco tradicional nos cortes de gastos. “É necessário repensar também as contribuições e as fontes de receita, e inovar na forma como enxergamos a seguridade social, incluindo assistência, seguro-desemprego e saúde”, defende Afonso. Ou seja, não basta apenas aumentar a idade mínima ou o tempo de contribuição: é preciso redesenhar o sistema com uma visão mais ampla e sustentável.
Novas relações de trabalho
As mudanças precisam contemplar soluções para as novas relações de trabalho, com o aumento dos trabalhadores em aplicativos (Uber e iFood, por exemplo) e a pejotização.
Nos últimos quatro anos, os brasileiros sem carteira assinada e os trabalhadores formais por conta própria foram os principais responsáveis pela expansão do mercado de trabalho no País. Entre 2019, antes da pandemia, e o fim de 2023, o número de trabalhadores por conta própria formalizados cresceu 27,4%, enquanto o de empregados informais no setor privado (excluindo os domésticos) aumentou 10,4%, segundo estudo da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
“Desde o início do século, os próprios empregadores privados passaram a preferir contratar trabalhadores como prestadores de serviço, em vez de celetistas, tanto nos setores menos qualificados, como limpeza e vigilância, quanto nos cargos mais bem remunerados, como executivos e profissionais especializados”, explica. O porcentual de arrecadação da contribuição sociais sobre salários pelos empregadores vem caindo: em 2019, era 5,63% e, em 2024, 4,96%.
Segundo ele, são dois movimentos distintos, mas que, juntos, minam o modelo tradicional da Previdência Social. “Por isso, defendo que é hora de reformar e, mais do que isso, revisitar a própria concepção do que entendemos por reforma previdenciária”, conclui o professor do IDP e da Universidade de Lisboa.
Geração Z e suas prioridades
Para agravar os desafios da Previdência, há uma tendência crescente entre os profissionais mais jovens e qualificados de evitar vínculos únicos, horários fixos e trabalho em um só local. O professor Afonso destaca que a opção pelo chamado trabalho independente, ou economia do bico, agravará o cenário brasileiro.
Na avaliação de Afonso, o maior desafio para políticas públicas sociais é repensar as novas relações trabalhistas com o acesso e a oferta de benefícios assistenciais, seja do bolsa-família, seguro-desemprego e, sobretudo, da saúde.
Pirâmide etária brasileira
Em dezembro do ano passado, 67,745 milhões de trabalhadores contribuíam com a Previdência, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número é recorde e equivalia a 65,3% da população ocupada.
A proporção de contribuintes, no entanto, já foi um pouco maior, segundo a série histórica do IBGE. Ela já alcançou 66,5% em junho de 2020, no auge da pandemia de covid, quando muitos informais deixaram o mercado de trabalho, e oscilou no patamar de 66% entre 2015 e 2016.
“Houve um avanço de ocupados com carteira de trabalho nos últimos anos, uma taxa de formalização maior da economia, que ajuda a ter mais contribuintes para a Previdência”, diz Bruno Imaizumi, economista da LCA 4intelligence. “Mas isso está muito alinhado com o atual momento da pirâmide etária brasileira. A Previdência é um assunto delicado e vamos ter de discutir muito possíveis reformas nos próximos anos.”
Custo elevado da Previdência
O gasto com Previdência consome quase metade das despesas obrigatórias do País, num cenário em que a situação fiscal é bastante delicada − o próprio governo já indicou que as contas públicas devem entrar em colapso em 2027, quando se inicia um novo mandato presidencial.
Na apresentação do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias, a equipe econômica estima que as despesas obrigatórias devem somar R$ 2,385 trilhões no ano que vem. O gasto com Previdência deve ser pouco menos da metade desse montante (R$ 1,130 trilhão).
Em 2029, a projeção do governo é a de que as despesas obrigatórias devem chegar a R$ 2,837 trilhões, e a previdenciária, a R$ 1,375 trilhão.
Mexer na Previdência Social costuma ser um assunto sempre espinhoso para governos e demanda capital político. Antes de ser aprovada no governo Jair Bolsonaro, a última reforma da Previdência já estava bastante madura para a votação, pois foi amplamente discutida na administração anterior, de Michel Temer.
O economista-chefe da ARX Investimentos, Gabriel Leal de Barros, diz que “seria desejável” um debate que trate de uma reforma na Previdência, mas ele vê pouco espaço para o próximo governo conseguir uma mudança mais ampla no sistema.
Ele aponta, no entanto, três medidas de mais curto prazo que poderiam ajudar a amenizar o problema da Previdência nas contas da União. A primeira delas seria alterar a regra de ganho real do salário mínimo. “Não é possível dar um aumento acima da inflação. Ou é isso ou é preciso desindexar o Orçamento público do salário mínimo”.
O valor do mínimo é definido com base na inflação do ano anterior e no crescimento do PIB de dois anos antes, mas ficou limitado a uma taxa real de 2,5%, assim como o teto do arcabouço fiscal. Em 2026, ele deve ser de R$ 1.630.
Hoje, para cada R$ 1 de aumento do salário mínimo, o governo gasta mais R$ 400 milhões com Previdência, Benefício de Prestação Continuada (BPC), abono e seguro-desemprego.
A segunda medida proposta por Leal é um pente-fino para apurar irregularidades na concessão de benefícios. “Isso ajudaria bastante no curto prazo. Daria um fôlego para as contas se fosse bem feito.”
E, por fim, ele também avalia que o País precisa avançar numa agenda digital que permita ao governo fazer um cruzamento dos programas sociais para apurar sobreposições de políticas sociais.
“Essa agenda digital facilita a identificação de problemas de formulação. Vai ter gente que recebe dois, três, quatro, cinco benefícios diferentes, o que revela que a política está claramente mal desenhada, assim como é possível identificar problemas de execução e fraude”, afirma.
Discussão global
A discussão sobre reformas na Previdência não é exclusividade do Brasil. O resto do mundo tenta encontrar uma solução para garantir a capacidade financeira e evitar a falência de seus sistemas. “Muitos países estão repensando o trabalho e a proteção social. Na Europa, já foram adotadas medidas para retardar aposentadorias, não apenas para reduzir os custos de seus regimes, mas para manter trabalhadores no mercado, em uma tentativa de que os ‘cabelos grisalhos’ cubram o desinteresse dos cabelos jovens”, diz José Roberto Afonso.