Ninguém poderia esperar algo diferente: Screamboat, slasher com Mickey Mouse, é um filme para dar risada. Apesar de ser classificado (e vendido) como terror, não arranca arrepios da espinha, nem provoca pesadelos. Há sangue jorrando e mortes aos montes, sim, mas o foco principal é arrancar gargalhadas com essa figura vestida de rato que tenta emular o visual do Mickey em seu primeiro curta-metragem – justamente aquele que caiu em domínio público ano passado, escapando das garras implacáveis da Disney.
Essa intimidade com a comédia, e não com o terror, já salta aos olhos na proposta do filme, que invadiu os cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 1. A trama, orquestrada pelo cineasta Steven LaMorte (do terror do Grinch, O Malvado), mergulha num grupo de nova-iorquinos perseguido pelo rato amaldiçoado numa barca que navega até Staten Island.
Ao longo da travessia, Mickey – vivido por David Howard Thornton, o Art de Terrifier, e chamado de Screamboat Willie – ceifa vidas sem piedade. É a crueldade em estado bruto.
Da pele do rato à carcaça do filme
Estômagos mais sensíveis certamente ficarão revirados com tantas cenas gore, com assassinatos explícitos sem qualquer pudor. No entanto, aficionados desse estilo podem sair com gosto de quero mais. Screamboat jamais alcança o virtuosismo de Terrifier na inventividade (e na brutalidade visual) das mortes, nem sequer se aproxima de outros exemplares do cinema de terror protagonizados por ícones infantis – como o perturbador Ursinho Pooh: Sangue e Mel ou até mesmo o bizarro (e hilariante) A Maldição de Cinderela.
Screamboat, inexplicavelmente, pisa no freio, transformando o ratinho quase em um anjo de candura perto de Art. Provavelmente uma estratégia calculada de mercado para explorar o sangue nas cenas, mas sem afugentar completamente o público mais sensível à violência explícita. As carnificinas estão ali, evidentemente, mas nada tão impactante quanto a vítima esfolada viva em Terrifier 2 (relembre aqui as 7 mortes mais marcantes de Terrifier 1 e 2), por exemplo, ou a catástrofe da boate em Sangue e Mel 2.
‘Screamboat’ é filme engraçado, bizarro e violento — e nem por isso é bom Foto: Imagem Filmes/Divulgação
E o que torna tudo isso tão engraçado? Para começar, a figura do Mickey Mouse possuído pelo demônio é desconcertante, absurda, escancaradamente bizarra. A decisão de retratá-lo comicamente pequeno em cena, os efeitos visuais deliberadamente precários e o rosto humano de Thornton provocam um estranhamento que beira o surreal.
Deliciosamente perspicaz também é como a produção manipula os elementos sonoros, do assobio icônico do personagem até a voz estridente que habita o imaginário coletivo.
Saboroso, também, como o filme se esforça para complexificar a narrativa referenciando outras propriedades, desde o sapatinho de cristal da Cinderela até uma alusão completamente deslocada, e por isso mesmo hilariantemente absurda, à atração It’s a Small World, do Magic Kingdom. É como um mosaico de provocações à Disney, zombando impiedosamente de todas as propriedades que o estúdio protege com unhas e dentes.
No desfecho, apesar de toda a diversão, resta uma necessária constatação: o cinema trash de terror clama por renovação. Screamboat não apenas exala o aroma dos anos 1980, como manipula seus personagens da mesma forma, como um fóssil cinematográfico.
As mulheres são retratadas como criaturas de inteligência abaixo da média, os homens como machos alfa incompreendidos. As inúmeras piadas de cunho sexual invariavelmente aparecem de maneira depreciativa, seja com mulheres despidas, jovens inocentes que não dominam nem mesmo a arte da fuga, e homens que, ao tentarem domar o caos, acabam com um pênis decepado caindo-lhes sobre o rosto. Inacreditável, mas é isso mesmo.
Willie dança com uma vassoura pouco antes de uma morte violenta Foto: Imagem Filmes/Divulgação
Falta amadurecimento a LaMorte, que demonstra aptidão para extrair humor desse rato demoníaco, mas jamais consegue atualizar a narrativa que está sendo desvelada.
No final das contas, Screamboat poderia transcender a mera colagem de referências para se tornar uma história genuinamente audaciosa e inventiva – provocando, de fato, a Disney. Ao menos, porém, serve como banquete para os fãs desse nicho crescente do cinema em que personagens queridos da infância são metamorfoseados em criaturas vis e violentas.