Peter BurkeHistoriador
A circulação de mentiras, conhecida hoje por fake news, multiplicou-se nos últimos anos graças ao crescimento das redes sociais. Mas não se trata de um fenômeno recente – desde a Revolução Francesa, em 1789, passando pela disseminação de “relatórios falsos” na Inglaterra no século 19, até os dias atuais, com as redes sociais como principais propulsoras, a manipulação da informação marca a história da humanidade.
“Na verdade, os objetivos dos ‘desinformadores’ permanecem praticamente os mesmos: enganar e dividir os inimigos, enquanto mobilizam apoiadores”, afirma o historiador britânico Peter Burke, que vai conversar sobre o assunto com o público na quarta-feira, 7 de maio, às 19h, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, durante a série Encontro com os Escritores. A entrada é gratuita mediante inscrição prévia.
Professor emérito da Universidade de Cambridge e referência em História Moderna Europeia, Burke mostrará como a manipulação da informação não é um fenômeno recente. Além do panorama histórico, ele vai examinar o papel das redes sociais na disseminação de desinformação na era digital, propondo reflexões sobre como combatê-la.
Aos 87 anos, Burke atuou como professor visitante da USP nos anos 1990 e é autor de diversas obras como Testemunha Ocular – O Uso da Imagem como Evidência Histórica, A Arte da Conversação e O Polímata: uma História Cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag, todos publicados pela Editora Unesp, que promove o evento ao lado da Universidade do Livro e da Biblioteca Mário de Andrade. Sobre o assunto de sua palestra, Burke adiantou alguns tópicos ao Estadão, em uma entrevista por e-mail.
A manipulação de informações não é um fenômeno recente. Mas é possível dizer que se tornou mais perigosa atualmente?
Como você sugeriu, a manipulação de informações para persuadir alguém de algo é uma prática com uma longa história. O que muda são os meios de comunicação, começando com o boato, seguido pela escrita, imprensa, rádio, televisão e internet. Também concordo com você que esse tipo de manipulação é mais perigoso do que nunca, porque a ascensão das mídias sociais permite que notícias falsas circulem mais rápida e amplamente.
Como podemos explicar a coexistência paradoxal de duas tendências: o crescimento da informação e o crescimento da ignorância?
Se definirmos a ignorância da maneira usual como a ausência de conhecimento, conclui-se que não podemos falar de seu crescimento. Portanto, eu formularia seu paradoxo de uma maneira diferente, com um contraste entre o que a humanidade sabe e o que os indivíduos sabem.
A humanidade como um todo nunca soube tanto quanto hoje, mas os indivíduos não são, em geral, mais informados do que seus ancestrais. Simplesmente sabemos coisas diferentes. Nas escolas, a introdução de um novo tópico é acompanhada pela expulsão de algo diferente para abrir espaço para ele. E algo semelhante acontece na vida cotidiana. Cada livro que lemos ou cada programa de televisão que assistimos é à custa de outro livro ou programa para o qual nunca teremos tempo.
O historiador Peter Bruke fotografado pelo Estadão em passagem pelo Brasil em 2005. Foto: Paulo Liebert/Estadão
E como explicar os cruzamentos históricos da ignorância e sua relação com as estruturas temporais de poder?
Francis Bacon, filósofo inglês do século 17, escreveu a famosa frase: conhecimento é poder (ou seja, conhecimento possuído por governantes). Por outro lado, a ignorância (a ignorância de outras pessoas) é uma ajuda para alguns governantes. Pode-se dizer que a ignorância é uma vantagem para regimes autoritários, mas uma desvantagem para democracias.
É uma vantagem para regimes autoritários porque quanto mais as pessoas sabem, maior a probabilidade de criticarem seu governo. Consequentemente, desastres são encobertos o máximo possível, enquanto Stalin notoriamente detestava cafés e telefones públicos porque pensava (provavelmente com razão) que, se as pessoas se encontrassem e conversassem, provavelmente falariam mal dele. Por outro lado, a ignorância dos eleitores é uma desvantagem para as democracias, pois leva esses eleitores a fazerem escolhas imprudentes (Trump!).
Atualmente existem vários sites satíricos com manchetes provocativas e, mesmo que avisos alertem de que não passam de sátiras, nem todo mundo percebe isso e acreditam. Quão perigoso é isso?
É sempre perigoso não estar ciente dos avisos de isenção de responsabilidade, não apenas no caso da sátira, mas também ao comprar um carro ou contratar um seguro. Você precisa ler as “letras miúdas” e também estar ciente do que o vendedor não está lhe dizendo. Muitas vezes, a culpa é do remetente da mensagem, mas às vezes a culpa é do destinatário, que é insensível à sátira ou, na verdade, à ironia.
Por exemplo, em 1729, o escritor britânico Jonathan Swift publicou sua Modest Proposal (Proposta Modesta), argumentando que a melhor maneira de aliviar o fardo que a sociedade carregava sobre os filhos dos pobres irlandeses era vendê-los aos irlandeses mais abastados para serem devorados. O fato de o panfleto de Swift ter sido violentamente atacado mostra que alguns leitores levaram sua proposta ao pé da letra, em vez de considerá-la uma sátira às políticas do governo da época.
Quando as pessoas começam a acreditar em algo falso e perdem a confiança nas instituições, o que fazemos?
Esta é uma pergunta difícil porque, como espero que você concorde, é mais fácil perder a confiança de alguém do que recuperá-la. Pode-se começar a tarefa de reconquistar a confiança aumentando a transparência da instituição em questão, seja um governo, uma empresa, uma igreja ou uma universidade. Transparência inclui deixar claro ao público que a corrupção e o bullying serão expostos e punidos. Transparência também inclui confiar no público, compartilhar problemas e discutir soluções. Dessa forma, a confiança na instituição pode ser restabelecida ao longo dos anos.
O que estamos vendo não é um problema tecnológico ou de mídia social, mas um problema humano?
Em uma palavra – ou três palavras –, minha resposta a essa pergunta é “todas as três” opções que você mencionou. Notícias falsas são um problema de mídia porque as notícias são disseminadas pela mídia. É um problema tecnológico porque as novas tecnologias permitiram que informações verdadeiras e falsas se espalhassem de forma mais ampla e rápida do que nunca.
É um problema político porque pelo menos alguns governos estão ativos na circulação de notícias falsas, enquanto a maioria está preocupada com sua disseminação. Os governos também têm um papel a desempenhar na limitação do impacto das notícias falsas, seja tomando medidas contra sites que as disseminam, seja ensinando o público a ser crítico em relação às mensagens que veem ou ouvem.
Peter Burke na 8º Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2010. Foto: Tasso Marcelo/Estadão
Qual é a diferença entre “ignorância estratégica” e “política da ignorância”?
“Ignorância estratégica” descreve pessoas que optam por permanecer ignorantes sobre algo, desde eleitores que não querem “perder tempo” estudando as questões em jogo nas eleições até pessoas que não querem saber sobre as atrocidades cometidas por seus próprios governos (como o Holocausto ou “los desaparecidos” na Argentina, Chile e Brasil). A “política da ignorância” descreve governos que tentam manter seus cidadãos ignorantes para controlá-los mais facilmente.
Um dos motivos para a disseminação da desinformação (misinformation) é o lucro. Qual é sua opinião sobre isso?
Gostaria de distinguir “misinformation” de “disinformation”. “Misinformation” é informação falsa disseminada por pessoas que acreditam que ela seja verdadeira, como no caso de muitos rumores ao longo da história, como no caso da disseminação da peste pelos judeus – um boato que se repetiu, juntamente com a peste, ao longo dos séculos. Muito mais recentemente, quando Hillary Clinton concorreu à presidência, correu o boato de que ela matava e comia crianças, um boato que circulou séculos antes sobre as chamadas bruxas.
Por outro lado, “disinformation” refere-se a tentativas deliberadas de enganar, seja com fins lucrativos, no caso de empresas, ou para manter o poder, no caso de governos. Por exemplo, na década de 1950, os serviços secretos russos cunharam o termo “desinformação” (“disinformation”) para se referir à disseminação de informações falsas para fins políticos – uma prática que, obviamente, foi seguida por muitos outros governos de diferentes ideologias.
Gostaria que o senhor comentasse, em relação ao momento em que vivemos, as consequências duradouras da produção estratégica de ignorância como política de Estado. E, acima de tudo, qual a eficácia da desinformação nas mídias sociais em uma campanha política.
A curto prazo, manter as pessoas na ignorância, seja sobre desastres, corrupção e assim por diante, provavelmente beneficia os governos. A longo prazo, esse engano pode ser revelado e levar à perda de confiança. A eficácia da desinformação maléfica no caso de campanhas políticas é obviamente difícil de mensurar. Por um lado, parece que o político britânico Boris Johnson venceu sua campanha pelo Brexit mentindo sobre os benefícios que ela supostamente traria, mas pagou o preço mais tarde, quando as mentiras se tornaram de conhecimento comum. Um caso mais complexo é a intervenção de Putin nas eleições americanas, já que tanto sua extensão quanto sua eficácia permanecem desconhecidas atualmente. Portanto, sua pergunta é impossível de responder no momento, embora possa ser daqui a 50 anos!
Série Encontro com os Escritores com Peter Burke – A longa história das ‘fake news’
- Data: 7 de maio de 2025
- Horário: 19h às 21h
- Local: Biblioteca Mário de Andrade – Rua da Consolação, 94, República
- Gratuito, com vagas limitadas (retirada pelo Sympla)