As notícias da morte do especial de Roberto Carlos na Globo foram exageradas. Depois de algum suspense, contrato renovado até 2027, o Rei fez sua reaparição televisiva anual nesta terça-feira (23), com o Especial Roberto Carlos — Noite Feliz, na mesma emissora onde bate ponto há mais de meio século. Sob a batuta de uma nova diretora geral, Angélica Campos (coincidentemente, sucessora de Boninho também no BBB), a mais tradicional atração de fim de ano da TV brasileira ressurgiu como uma espécie de culto ecumênico musical bem brasileiro. Um tanto quanto contrito, é verdade, mas enriquecido por um carismático e saudavelmente diverso elenco de coadjuvantes.
Se o resultado foi capaz de despolarizar ceias familiares e deixar trancadas no freezer eventuais tortas de climão entre diferentes gerações, não é possível ter certeza. Ficou evidente, porém, o esforço por uma mensagem religiosa/espiritual plural, buscando união através de diferenças. Em sua última fala, depois dos votos de “Feliz Natal” e menção ao Espírito Santo (o próprio, não o estado natal do cantor), Roberto Carlos desejou a todos, como bom amante à moda antiga (e praticante do bom e velho sentimento cristão): “Que nós nos amemos cada vez mais”.
Foi a culminância de um percurso que terminou com o sempre vibrante soul gospel Jesus Cristo, o ritual de Eu Ofereço Flores (nome da turnê atual) e, novidade adequada, Noite Feliz (versão da tradicionalíssima canção alemã Stille Nacht). Não faltaram também Nossa Senhora, entoada pelo público na porção final, e Menino Jesus, com o Coro Vozes de Gramado Infanto Juvenil.

Roberto Carlos recebeu os convidados João Gomes, Fafá de Belém, Supla e Sophie Charlotte Foto: Mateus Bruxel/TV Globo
Gravado em 12 de dezembro no Serra Park, em Gramado (RS), capital do kitsch no Brasil — que se transforma anualmente em parque temático natalino —, o programa teve momentos mornos, mas brilhou na paleta de cores e na tradução do show em imagens. De terno branco, com camisa de cetim azul celeste, harmonizando com o azul royal dos ternos dos músicos, Roberto comandou o show/missa com a star quality e a competência vocal de sempre. Sua banda foi valorizada, com bastante espaço para tomadas em primeiro plano do guitarrista Paulinho Ferreira, do tecladista Tutuca Borba e do naipe de metais. A música, alma do negócio em todos os sentidos, agradece.
Roberto abriu com Emoções e emendou com Esse Cara Sou Eu, recebida com vibração por muitos casais da plateia, indiferentes às patrulhas recebidas pela letra. Em Amigo, mudou a letra para homenagear seu grande parceiro, morto em 2022: “é muito bom saber que Erasmo é meu amigo”. Os fãs do repertório religioso foram brindados com uma canção cult, Luz Divina (aquela do refrão “essa luz/ só pode ser Jesus”), de 1991, começo de sua fase carola, inspirada pela esposa Maria Rita, que morreria precocemente em 1999.
Primeiro convidado a se apresentar, o onipresente pernambucano João Gomes, 23 anos, homem do ano na música brasileira, trouxe piseiro, legitimidade popular e até um toque do que pareceu ser espontâneo. Depois de cantarem o hit de Gomes Eu Tenho a Senha, reviveram o clássico gospel de Roberto Fé (de 1978), e o jovem xodó do país queria mais: “Está faltando uma…”. Puxou “estou guardando o que há de bom em mim”, verso de “A Volta”, parceria de Roberto com Erasmo que estourou em 1966, na gravação do grupo Os Vips. Foi acompanhado pelo público nos versos seguintes (“para lhe dar quando você chegar/ toda a ternura do meu amor”), mas, diante da mudez hesitante do Rei, interrompeu-se: “Ó, não vou lhe atrapalhar, não”. E despediu-se com um abraço depois de se declarar, quase em tom de desculpas: “Eu te amo muito, tá bom?”.
Outro reforço acertadíssimo foi Fafá de Belém, de vestido em tom vermelho Papai Noel e linda cabeleira branca, honrando a beleza autêntica de seus 69 anos. Além de toneladas de carisma, ela mostrou que a voz continua nota mil, traçando com o Rei Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo (hit safra 1968) e Já Se Passaram os Anos, uma versão inédita em português do “boleraço” Como Han Pasado Los Años, um clássico “recente” do gênero, lançado há trinta anos. Fafá foi quem extraiu de Roberto as interações menos secas — até o puxou para dançar —, o que é um feito.
O Rei não acusa a idade na expressão vocal, mas parece travado cenicamente. O encontro com o velho amigo Jorge Benjor (anunciado como “meu compadre”), 86 anos (controversos, mas prováveis), prometia muito, mas se ressentiu disso. Com a voz algo rouca, prudentemente agasalhado com um casaquinho de moletom azul arroxeado, Jorge ainda lembrou em Eu Sou Terrível a energia do Babulina, apelido roqueiro que tinha nos tempos da turma da rua do Matoso, na Tijuca, zona norte carioca, quando conheceu o Rei, nos idos de 1957. A outra pérola pinçada para o encontro, Chove Chuva, ganhou novos contornos semânticos no trecho “hoje eu vou fazer uma prece pra Deus, nosso Senhor”, sob medida para o Roberto Carlos religioso de hoje. Por idiossincrasia, o Rei preferiu limar a parte “por favor, chuva ruim”. Na parte final da canção, depois de um bom solo blueseado do guitarrrista Paulinho Ferreira, os dois octogenários trocaram versos, emoldurados por violinos, finalizando com um aperto de mão e um abraço pouco apertado.
No encontro com Supla, uma escolha difícil de entender, o brilho ficou mais por conta do figurino verde fosforescente de marcador de texto. O two hit wonder paulistano ressuscitou sua Garota de Berlim, sucesso new wave de 1985, berrou uns “come on” que assustaram um pouco o Rei, e, juntos, os dois avançaram por um medley rock’n’roll, a partir da sexy e sexagenária Tutti Frutti, lançada por Little Richard em 1955. No bolero beatle And I Love Her, Supla teve dificuldades com o tom, justamente na frase-título da música.
A atriz Sophie Charlotte, habituê do especial do Rei desde 2014, emplacou sua terceira edição somando bem mais. Cantou com Roberto Proposta e As Canções Que Você Fez Pra Mim, e, ossos do ofício, encarou um publi interativo encaixado no meio do programa, um pouco à moda antiga das garotas-propaganda. Faturar faz parte. Assim como as religiões, o show business, espiritualizado ou não, não se alimenta de luz.


