“Eu sou a Sofia, sou neta do Tenório. Estou aqui com minha mãe, meus tios e minha prima. Meu avô foi morto há quase 50 anos na Argentina e há quase 50 anos minha família luta pelo reconhecimento dessa morte, por essa certidão.” Sofia Cerqueira Borges, 25 anos, é uma das três filhas de Elisa – que é a filha mais velha de Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o pianista brasileiro assassinado em março de 1976 pela ditadura argentina, e cujos restos mortais foram identificados pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), conforme o Estadão mostrou em 13 de setembro.
A certidão a que ela se refere é o atestado de óbito que só agora foi emitido por um órgão brasileiro. No caso, o 4º Ofício do Gama (DF), por solicitação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Somente agora o cidadão brasileiro Francisco Tenório, que morreu três meses antes de completar 35 anos, foi reconhecido como morto pelo Estado brasileiro.
E esse mesmo Estado é responsabilizado pela morte do músico.
No item “Causa da Morte”, o atestado mostra: “Não natural violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”. É o primeiro atestado emitido pelo Brasil. A Argentina emitiu o primeiro ainda em 1976, mas sem identificação, porque se tratava de um corpo encontrado no meio de um matagal.

O corpo do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior foi identificado pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) Foto: Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) / Acervo da família
“Finalmente, depois de 49 anos, recebemos a certidão de óbito de nosso pai, pianista, brasileiro, que estava a trabalho na Argentina e foi assassinado”, diz Margarida, uma das filhas do músico, que agradeceu à EAAF e à Comissão Especial, sem deixar de criticar o que considera omissão do Estado. “Pena a nossa mãe, Carmen, não estar mais aqui para poder receber esse documento que nos foi negado durante anos. Esperamos que a partir de agora tenhamos algum amparo do governo, que nunca nos procurou, nem para um pedido de desculpas.”
O atestado brasileiro, entregue à família agora, em dezembro de 2025, durante evento da Comissão Especial em Brasília, cumpre resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para emissão de certidões aos representantes dos desaparecidos políticos listados no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A responsabilização do Estado pode causar estranheza pelo fato de Tenório Jr., que não tinha qualquer participação em movimentos políticos, ter sido morto em outro país. “A possível relação que a Comissão fez – e faria todo sentido – é com a chamada Operação Condor”, diz o jurista Pedro Dallari, ex-presidente da CNV, referindo-se ao acordo de cooperação entre as ditaduras sul-americanas dos anos 1970.
Dallari observa que o relatório final da Comissão, de 2014, traz capítulo específico sobre o tema: “Conexões internacionais: a aliança repressiva no Cone Sul e a Operação Condor”. Com destaque, inclusive, ao papel do Ministério das Relações Exteriores. “Uma diplomacia – que, por definição, deveria atuar basicamente primeiro do diálogo e do entendimento – que desvirtuou suas funções a ponto de envolver-se diretamente com a violência ilegal e com a exceção”, destaca o documento da Comissão da Verdade.

Tenório Jr teve certidão de óbito retificada pelas autoridades argentinas, à direita. À esquerda, a certidão de óbito dos anos 70, em que não constava sua identificação Foto: Arquivo/Estadão
O autoritarismo do Estado argentino
No último dia 11 de dezembro, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) lançou campanha para marcar os 50 anos da Operação Condor. De acordo com o governo brasileiro, ela nasceu formalmente em 1975, durante reunião realizada no Chile, que havia mergulhado na ditadura dois anos antes, com o golpe que derrubou Salvador Allende. A Argentina entraria para o clube do autoritarismo e da violência justamente em março de 1976. No dia 24, apenas seis depois do desaparecimento de Tenório Jr.
“Esse atestado de óbito emitido pela Justiça brasileira é o reconhecimento legal da morte do Tenório Jr. Mais ainda, mostra que o caso se transforma de pessoa desaparecida para uma vítima morta pelo Estado argentino, com o conhecimento do Estado brasileiro à época”, explica Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade Rubens Paiva do Estado de São Paulo.
Ao lançar a campanha, o MDHC citou o caso do músico como emblemático. Em setembro deste ano, como o Estadão revelou, o corpo do pianista foi identificado pela EAAF, após comparação das impressões digitais: ele foi assassinado com cinco tiros e o corpo foi jogado em um terreno baldio, sendo enterrado no dia 20 de março (dois depois do desaparecimento) no Cemitério Municipal de Benavídez, em Tigre, a uma hora de Buenos Aires.
É essa a data – 20 de março – que aparece no atestado de óbito como data do assassinato. Recentemente, a Argentina já havia retificado a certidão emitida originalmente em 1976, sem identificação do corpo sepultado em Benavídez.
“O texto da certidão nacional é padrão para todas as vítimas da ditadura. Mas é uma formalidade que ajudará juridicamente a família aos trâmites legais”, aponta Adriano Diogo.
Tenório era casado, desde 1967, com Carmen. Tiveram cinco filhos: Elisa, Francisco, Margarida, João Paulo e Leonardo. Os dois últimos faleceram. Leonardo sequer conheceu o pai – nasceu menos de um mês depois do desaparecimento. Ou seja, Carmen estava grávida de oito meses quando o marido sumiu. Aos 33 anos, ela teve que criar sozinha cinco crianças, com idades desde recém nascido a 8 anos. Ela morreu em 2019.
“Minha avó lutou a vida toda em busca de respostas”, lembrou a neta Sofia no evento de Brasília. Sofia, que também não conheceu seu avô, disse que Tenório nunca teve qualquer participação política. “Acho que é importante pontuar, para lembrar que em um Estado autoritário o alvo da violência não são somente opositores políticos, é o povo. A luta por memória, verdade e justiça é mais do que uma reparação às nossas famílias e a nossos familiares perdidos, é também fundamental para a gente ousar sonhar com um país onde as nossas vidas possam ser pautadas pela liberdade, não pela violência”, afirmou a jovem.
“Se (a morte de Tenório) tivesse relação com política, já seria um absurdo. Agora, é um absurdo em dobro”, comentou Pedro Dallari.
Tenório Jr. acompanhava Vinícius de Moraes e Toquinho em uma viagem que havia começado no Uruguai. Com ele, seguiam o baterista Mutinho e o baixista Azeitona. A viagem naquela turnê musical registra o momento terrível de seu desaparecimento e morte, e também momentos amorosos que revelam todo afeto que o músico tinha para com a família. Margarida havia completado 5 anos em fevereiro de 1976. Lembra de ter recebido um presente enviado da Argentina – uma camiseta com desenho de cachorrinho que mexia os olhos. Presente do pai (ou “Papú”, como as crianças o chamavam) que nunca mais veria. Francisco faria 7 em julho. Elisa fez 8 anos exatamente no dia do desaparecimento, 18 de março. Havia recebido um ursinho. Os presentes chegaram, o pai nunca mais voltou.


