Ernesto RodriguesJornalista e escritor
Há sete anos o jornalista mineiro Ernesto Rodrigues convive com um assunto: TV Globo. Depois de assistir a mais de 400 entrevistas concedidas ao Memória Globo e fazer uma centena de entrevistas, Rodrigues organizou a história da emissora fundada pelo empresário Roberto Marinho (1904-2003) em uma biografia dividida em três partes, cada uma com cerca de 700 páginas e lançamento pela Autêntica.
O primeiro volume, A Globo – Hegemonia (1965-1984), foi publicado em 2024 e conta como a emissora se consolidou como a mais importante do País em meio à ditadura militar. O segundo, A Globo – Concorrência (1985-1998), lançado agora, conta os altos e baixos da Globo diante das transformações que o País viveu no período. O terceiro, Globo Metamorfose, está previsto para ser lançado até dezembro e vai cobrir eventos até 2025, quando Globo celebra seus 60 anos de fundação.
Rodrigues é velho conhecido da família Marinho. Trabalhou no jornal O Globo no início dos anos 1980. Saiu de lá para o concorrente Jornal do Brasil e depois foi para as revistas Isto É e Veja. Em 1986, ingressou na TV Globo, na qual trabalhou por 15 anos como editor de telejornais como Jornal Nacional e Jornal da Globo, até ser demitido após ordenar que Sandra Annenberg anunciasse em um plantão a morte do atleta João do Pulo, que só ocorreria de fato 11 dias depois, em 29 de maio de 1999.
É com essa história que Ernesto abre o primeiro volume da biografia. E com ela também que iniciava aulas para turmas de Jornalismo da PUC-Rio, onde lecionou por dez anos. “Cometi um erro imperdoável”, costuma dizer.
Apesar do episódio, a relação com os Marinhos nunca foi cortada, conta ele. Rodrigues produziu materiais para emissora por meio de sua produtora independente. Um deles foi uma série sobre o piloto Ayrton Senna, de quem também é biógrafo, para o Esporte Espetacular, em 2014. Também produziu um vídeo para ser exibido na festa de 70 anos de Roberto Irineu Marinho, filho mais velho do fundador da Globo.
A ideia da biografia sobre a TV Globo nasceu em 2017, época em que Rodrigues pediu acesso irrestrito ao conteúdo do projeto Memória Globo. Foi atendido. “Não houve qualquer ingerência do Grupo Globo. Não tive que submeter o texto a ninguém”, diz Rodrigues ao Estadão, ressaltando que se trata de um projeto sem vínculo com a emissora, publicado pela Autêntica Editora.
Na entrevista abaixo, o jornalista fala sobre personagens importantes da história da Globo – como os diretores José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, e Walter Clark – e faz questão de desmentir o que chama de “lendas” sobre a emissora, especialmente relacionadas à política e a acusações de manipulações sobre os telespectadores. “A história verdadeira é mais interessante”, garante.
Ernesto ainda adianta temas que abordará no último volume, período em que, segundo ele, a emissora precisou pegar um desvio para se adaptar às mudanças da TV aberta. “Em vez de fazer uma BMW, a Globo teve que passar a fazer um bom Toyota. Isso porque ninguém mais estava comprando a BMW”, explica. Veja a seguir os principais trechos. Procurada pelo Estadão, a emissora não se pronunciou, mas o espaço segue aberto.
No primeiro volume, você conta sobre como Roberto Irineu Marinho foi receptivo ao seu pedido de acesso irrestrito ao acervo da emissora. Passados dois volumes, a caminho do terceiro, por que você acha que ele foi tão aberto ao projeto?
A natureza da proposta que eu fiz levou Roberto Irineu a compartilhar o meu pedido com os irmãos para, depois, responder que eu poderia fazer os livros do jeito que eu desejava. Queria acesso irrestrito ao material da emissora. E, desde o primeiro momento, não houve qualquer ingerência do Grupo Globo. Não tive que submeter o texto a ninguém. Em uma conversa com o Roberto Irineu, disse que tinha para oferecer o profissional que sempre fui, desde 1980, quando comecei a trabalhar como repórter de O Globo. Eles devem ter considerado que eu tinha capacidade para fazer a biografia da emissora. O projeto não era dependente da Globo, mas dependi da emissora para ter acesso ao acervo.
Houve alguma conversa com ele ou com a direção da Globo depois da publicação dos livros?
Depois que o primeiro volume saiu, continuei a entrevistar o Roberto Irineu e o João Roberto para os outros dois volumes. Dias atrás, fiz uma pergunta ao João Roberto sobre a época em que o Lula foi eleito presidente. Ele me respondeu. A própria disposição deles em continuar a me responder é indício de que eles respeitam o meu livro.
Como você descreve, os anos entre 1985 e 1998, período que você aborda no segundo volume, foram de grande transformação política, social, econômica e cultural no Brasil. Foram também os mais agitados e difíceis para a emissora?
Foram anos difíceis para as áreas editorial e institucional. Um período em que a Globo enfrentou um desgaste de imagem muito grande decorrente de certos setores da opinião pública. Coisas até que nunca ocorreram ou que não ocorreram como exatamente achavam que havia ocorrido foram tomadas como verdades absolutas. Na área comercial, foi um sucesso absoluto, como mostro no livro. O desafio comercial viria mais tarde, no período em que abordarei no terceiro livro. Inclusive, algo que poucos sabem, e será um prazer revelar, são os detalhes da quase falência que a Globo enfrentou, que culminou em 2002.
Pode dar mais detalhes sobre essa ‘quase falência’?
A dívida contraída pela emissora para investimentos em TV a cabo era bilionária e toda feita em dólar (cerca de US$ 1,7 bilhão). Com o aumento da moeda americana, ficou impagável. Em 2002, a Globo pediu concordata na Justiça americana, pois a maior parte dessa dívida era com credores americanos. Foi a TV Globo que segurou o Grupo Globo. Se não fosse a TV, o jornal O Globo certamente teria dificuldade para sobreviver naquele momento. Vou contar tudo o que ocorreu dentro da empresa, como ela reverteu essa situação e o esforço interno para negociar com todos os credores, que envolveu a liderança do Roberto Irineu. Vou mostrar também os bastidores sobre como a questão foi tratada com o governo Lula, recém-eleito na época.
Nesse período desafiador para o jornalismo da emissora, entre 1985 e 1998, o episódio mais delicado foi a edição do debate Lula versus Collor nas eleições de 1989?
Sim, sem dúvida. Não a eleição como um todo, mas da reta final dela que resultou no dia do debate. Foi uma crise muito concentrada nesse dia. Não por outro motivo, eu gasto três ou quatro capítulos centralizados nos antecedentes e nos acontecimentos em torno do dia do debate. Como mostro no livro, a cobertura que a Globo fez da campanha não teve muita controvérsia.
Você detalha no livro como a edição do debate apresentada no Jornal Nacional favoreceu Collor, sugerindo que Lula havia sido derrotado no confronto, além de dar um tempo menor ao candidato do PT. Uma história que tem muitas acusações sobre os mandantes. Alice-Maria (diretora-executiva da Central Globo de Jornalismo à época), como seu livro mostra, disse que a edição não mudou o rumo das eleições, mas mudou a história da TV Globo. Você concorda com ela?
Concordo com ela que a edição mudou a história da Globo, no sentido de ser um retrocesso em um processo de profissionalização da cobertura política da emissora que estava em curso, ainda que de maneira tímida. Quanto à influência da edição no resultado da eleição, tendo a achar que sim, que pode ter contribuído para o resultado, pelo horário da exibição (por volta de 20h30) e pela concentração de informações (negativas) naquela edição. Mas não tenho como comprovar essa impressão.
Roberto Marinho, jornalista e empresário fundador da TV Globo Foto: Acervo Roberto Marinho
Jornalismo e dramaturgia são os dois grandes pilares da emissora. O primeiro muitas vezes é analisado de forma parcial, sempre pendendo para a cobertura política. O segundo, com grande paixão pelos aficionados pelo tema. Qual equilíbrio você buscou para abordar esses temas?
No caso do jornalismo, tinha muita coisa para ser feita. De certa maneira, há olhares muitos viciados sobre a TV Globo e poucos sustentados por fatos. Muitos trabalhos acadêmicos com viés político mal sustentado. Erros graves, como dizer que foram os militares do golpe de 1964 que deram a concessão da emissora para o Roberto Marinho. Não foram. Foi o Juscelino Kubitschek. Está documentado. Os órgãos da imprensa escrita contribuíram muito também, pois tinham desprezo absoluto pelos jornalistas da Globo. Achavam que eram iletrados, que não sabiam escrever. Um desconhecimento constrangedor sobre o funcionamento do jornalismo de televisão. Como jornalista, foi um terreno muito edificante colocar os pingos nos is. Temas como ditadura, censura, a briga com (Leonel) Brizola, a Globo e a Constituinte, a Globo e o Fernando Henrique Cardoso, a relação da Globo com o governo Lula etc. Modéstia à parte, o livro tem muitas revelações. Não quero dominar a verdade, ninguém domina, mas há no livro o maior esforço possível para ser verdadeiro, com tudo baseado em fatos e depoimentos. É um livro radicalmente jornalístico.
Entre jornalismo e teledramaturgia, em qual dos dois a Globo influenciou mais a sociedade brasileira?
Nunca existiu uma sala secreta na emissora com um bando de gente pensando em como manipular o espectador e mantê-lo preso a ela hipnoticamente. Há uma frase que diz que a Globo é, ao mesmo tempo, janela e espelho. Ela se vê. Na cobertura política, a emissora começou inexistente e omissa. Passou a ser governista e, digamos, subalterna. Depois, partiu para ser mais abrangente, porém cuidadosa. Até Fernando Henrique Cardoso, sempre governista. Depois, virou a página. A partir de Evandro Carlos de Andrade, que só tinha que dar satisfação aos Marinhos, os tabus caíram. É sobre essa fase do jornalismo a todo vapor que estou escrevendo (para o terceiro volume). Na dramaturgia, (os autores) Benedito Ruy Barbosa, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva, Manoel Carlos, Gloria Perez, cada um deles, tinha um Brasil na cabeça. E foi esse Brasil que cada um colocou em suas novelas. Nunca existiu uma versão monolítica. A área da dramaturgia sempre teve liberdade, mesmo que nem todas as novelas fossem aprovadas. A história verdadeira é mais interessante do que as lendas. A Globo sempre foi múltipla.
Lima Duarte como o personagem Sassá Mutema, que incomodou Roberto Marinho Foto: Acervo Globo
Você narra um momento bastante emblemático em que a política e a dramaturgia se confundiram e envolveram a direção da emissora. Foi em 1989, durante a campanha Collor X Lula. Novelas como ‘Que Rei Sou Eu?’ e ‘O Salvador da Pátria’ claramente trataram sobre o tema – e Roberto Marinho torceu o nariz para o que seria a personificação de Lula em Sassá Mutema. Quanto, na sua opinião, havia por parte dos autores resistência ao que a emissora exibia no jornalismo?
A mesma realidade brasileira que chegava à redação chegava à sala dos autores. Não tive nenhuma indicação de que alguma vez tenha havido qualquer reunião entre a Central Globo do Jornalismo e a Central Globo de Produção para amarrar temáticas. Até porque sempre houve uma ciumeira muito grande entre elas.
Falando em autores, há o Dias Gomes, ‘um dos comunistas do doutor Roberto Marinho’, que dava trabalho para os censores da ditadura militar. Como era essa relação do dono da emissora com a teledramaturgia? Ele gostava da ousadia dos autores?
Roberto Marinho gostava do negócio dele, de ser dono do jornal, de ver a primeira página. Era um cara do ramo, um dono de jornal que se transformou em dono de televisão. Ele nunca quis saber se o cara era comunista ou não. Queria saber se o jornalista ia dar um furo e se o jornal dele ia sair melhor do que o Jornal do Brasil, seu grande concorrente. Há uma mítica de que o Roberto Marinho protegia os comunistas. Não. Ele protegia os jornalistas dele. Há a famosa frase dele: “dos meus comunistas cuido eu”. Mas longe de ser uma simpatia pela causa comunista ou socialista. Ele era uma capitalista implacável, que teve a sorte de ter um monte de comunistas competentes trabalhando para ele.
Roberto Marinho achava que não tinha espaço para três grandes emissoras no Brasil
Impossível não considerar o assunto que é a relação da emissora com a ditadura militar. Depois de se debruçar nesse período, a qual conclusão chegou?
Roberto Marinho foi um aliado de primeira hora do golpe, não só pela emissora, mas pelo jornal. E não foi só ele. Toda a grande imprensa brasileira apoiou o golpe. Há uma leitura muito rígida desse período. A relação do Roberto Marinho com o Castelo Branco era uma, com o general Costa e Silva era outra – não era amistosa. Com o (Ernesto) Geisel, era distante. Roberto Marinho era detestado pelos militares nacionalistas do Ministério das Comunicação que tentaram, mais de uma vez, cassar a concessão da Globo durante a ditadura. Ele teve um problema sério com o (João) Figueiredo, sobretudo porque o Figueiredo resolveu a concessão do espólio da TV Tupi sem consultá-lo, o que o deixou muito chateado. Roberto Marinho achava que não havia espaço para três grandes emissoras no Brasil. E, de certa forma, ninguém nunca provou que ele estava errado. Nesses anos todos, a TV Globo foi a única que exclusivamente viveu de receita publicitária. A Manchete faliu. O Silvio Santos tinha o Baú da Felicidade para não deixá-lo preocupado com a saúde do SBT. A Igreja Universal sempre foi o porto seguro para qualquer rumo que a TV Record tomasse. A questão era que o Roberto Marinho tinha – e os filhos contam isso -, ainda na época das Diretas Já, com Figueiredo no poder, muito medo dos militares cassarem a concessão da Globo.
Sobre ciclos que se repetem, você narra no livro a defesa que Marília Pêra fez quando foi atacada pela esquerda por apoiar o Collor, em 1989: ‘Não patrulhe. Não se deixe patrulhar. Não perca seus amigos por causa de diferenças ideológicas’. A Globo se reaproximou agora de Regina Duarte, depois de ela deixar a emissora para participar do governo Jair Bolsonaro. Ela foi uma de suas atrações especiais de 60 anos no Programa do Bial, no qual disse: ‘Sinto que a sociedade já evoluiu, ela já é capaz de aceitar que eu posso fazer escolhas’. Isso mostra que, para um lado ou outro, independentemente da torcida, essas questões sempre se ajeitam?
Sim. Um exemplo que conto no final do volume 2: no segundo semestre de 1990, fui diretor de um Globo Repórter, feito pelo Caco Barcellos, sobre as ossadas (restos mortais de pessoas consideradas opositores do regime militar) do Cemitério de Perus (em São Paulo), programa do qual tenho mais orgulho. Discutimos muito como trataríamos o pessoal da esquerda. Chamaríamos de guerrilheiros ou terroristas? Militante era pouco. Chegamos no acordo para tratá-los como guerrilheiros, um termo mais ou menos neutro. O programa foi censurado (pela emissora). Cinco anos depois, estava em Londres, era chefe do escritório de lá, e o Evandro Carlos de Andrade assume. Ele pergunta à direção se tinha algo ainda censurado. Ele queria derrubar os tabus da emissora. Eu tinha uma cópia do programa comigo. Uma semana depois disso, ele foi ao ar. O mesmo programa, o mesmo conteúdo, o mesmo texto, o mesmo repórter. O Globo Repórter pôde dizer que aquela era a primeira reportagem da televisão brasileira sobre os desaparecidos políticos da ditadura. São ciclos, exatamente. Tudo depende das circunstâncias.
A TV aberta hoje está muito mais dependente das classes C, D e E do que antigamente. O Brasil não cresceu tanto quanto a TV Globo
Boni e Walter Clark construíram o que se chamou Padrão Globo de Qualidade, a partir dos anos 1970. Mais do que um conjunto de regras, ele moldou a excelência que a emissora alcançou. Esse padrão ainda pode ser observado atualmente?
Não existia um manual, é preciso deixar claro. Foi sempre uma mentalidade perfeccionista desses caras que se espalhou por todas as áreas da emissora. O que ocorre, até os dias de hoje, é que esse padrão continua, mas, como vou mostrar no volume 3, a Globo teve que pegar um desvio para um tipo de conteúdo que fosse competitivo com o conteúdo popularesco que passa a predominar na concorrência a partir da virada do século 20. No entanto, ele ainda faz diferença. Pergunta para a Ana Maria Braga o que ela acha de fazer o programa na Globo e sobre o que era fazer na Record. O padrão continua lá. Mas, em vez de fazer uma BMW, a Globo teve que passar a fazer um bom Toyota. Isso porque ninguém mais estava comprando a BMW. Foram para a TV a cabo e para o streaming. A TV aberta hoje está muito mais dependente das classes C, D e E do que antigamente. O Brasil não cresceu tanto quanto a TV Globo.
A Globo, então, atualmente, busca esse público?
Ela precisa desse público muito mais do que antes. Veja os intervalos comerciais da Globo atualmente, há muito mais varejo do que produtos sofisticados. No entanto, a Globo continua poderosa, competente tecnologicamente e na vanguarda. Só que não adianta fazer um supercarro para andar em uma estrada esburacada.
Por que as demais emissoras comerciais brasileiras não seguiram ou não conseguiram seguir esse padrão?
Primeiro pelo tamanho do mercado. Nos anos 1990, a TV Globo tinha a audiência somada das três principais emissoras americanas – NBC, ABC e CBS. Em faturamento, ocupava a sétima ou oitava posição em faturamento, uma posição influenciada pelo tamanho do mercado brasileiro. Segundo, o tempo que uma emissora leva para crescer. A Globo é prova disso. Demorou cinco anos para virar a audiência. Por fim, nunca houve por parte do Silvio Santos e dos bispos da Universal o compromisso principal com o negócio da televisão. Para Silvio Santos, a TV foi apenas um entre vários negócios. No caso da Universal, a Record é apenas um instrumento na igreja. A TV Manchete tentou, mas não teve fôlego.
Nada é mais coletivo, que é a principal característica da TV aberta
Há um assunto que há alguns anos está na pauta da emissora – e quase cotidianamente a afeta – que é a dispensa de talentos, a mudança nos contratos, entre outras ações nesse sentido. Qual o impacto disso para uma emissora que sempre teve justamente na exclusividade desses talentos seu principal capital ou vitrine?
É assunto do volume 3. Por mais que a Globo tenha sido tudo o que foi, pela dívida bilionária em dólar, teve que fazer algo para sobreviver nos últimos anos. A Marluce Dias da Silva, que foi o instrumento dos irmãos Marinho para tirar aos poucos o poder do Boni depois que o pai se afastou, trouxe organização e rentabilidade. Depois, foi substituída por Octávio Florisbal, que liderou uma fase de grande faturamento. O que houve foi um processo radical de racionalização nos métodos de produção. Há muita controvérsia sobre se determinadas pessoas deveriam ter sido dispensadas como foram. Porém, é outro momento. É uma Globo que convive com a presença de empresas estrangeiras de mídia, com plataformas de conteúdo, com a internet. O know-how que ela desenvolveu para descobrir o que o público em geral queria ver, atualmente, é inútil. Hoje há essa atomização gigantesca, algo customizado, não só de publicidade, mas de conteúdo sugerido por algoritmos para cada pessoa. Acho um perigo. É como assistir ao Oscar em que só seus preferidos ganhem – mas a festa do Oscar não é assim. É um fenômeno sociológico. As pessoas estão voltando para tribos. Nada é mais coletivo, que é a principal característica da TV aberta.
A propósito, alguns dos demitidos mais recentemente saíram atirando contra a emissora. Você não fez isso, ao menos publicamente, quando foi demitido, anos atrás. Eram outros tempos ou você pacificou tudo o que ocorreu? Aliás, o que acha sobre esse comportamento?
É algo muito pessoal. Por mais que eu tenha ficado triste, que tenha sido um solavanco na minha vida profissional, tecnicamente, como conto no livro, cometi um erro imperdoável. Noticiei errado a morte de uma pessoa. Nunca tive nenhuma vontade de sair batendo na emissora. Claro, tive decepções com algumas pessoas. O que percebo em colegas demitidos muito tempo depois de mim, pela importância e por tudo de bom que ocorre com quem trabalha na TV Globo, é que é um trauma a ser administrado. É humano se sentir traído, abandonado ou não reconhecido.
Boni, no lançamento de sua biografia, em São Paulo Foto: Tava Benedicto/Estadão
O Boni atira até hoje. No seu livro, ele reafirma a mágoa com a emissora…
O Boni está com uma idade (o empresário tem 89 anos) em que você começa ficar mais e mais sensível às coisas que te fizeram mal. O Boni teve um poder muito grande. Enquanto pôde, ele brigou com a Marluce. Os aliados dele na emissora também foram hostis à Marluce. Foi muito difícil para ele e para pessoas que foram ligadas a ele aceitar o que ocorreu com ele e com a TV Globo. Foi como se um grande gênio do futebol ou do automobilismo parasse e, depois, encontrasse dificuldades para seguir adiante na vida. No entanto, o caso mais agudo nem é o do Boni. É do Chico Anysio. Chico nutria um sentimento de rejeição que era impressionante.
Você é professor de jornalismo. Qual exemplo esse projeto deixa aos futuros profissionais da área?
Gostaria muito que esse livro fosse lido por futuros jornalistas para que compreendam que nada substitui uma apuração bem feita e um texto caprichado. Um exemplo do melhor que um jornalista pode oferecer para a sociedade, que é contar uma boa história. O que é desafiador, pois, hoje em dia, as pessoas não querem ler nem ouvir, querem escrever e falar.
Capa do livro ‘A Globo – Concorrência’, de Ernesto Rodrigues Foto: Autêntica Editora
- A Globo – Concorrência (1985-1998)
- Ernesto Rodrigues
- Autêntica Editora
- 720 páginas
- R$ 129,80 (físico) e R$ 90,90 (ebook)