Quando o compositor paraibano Antônio Barros (1940-2025) compôs o forró Homem Com H, inspirado por uma frase do pernóstico personagem Odorico Paraguaçu, de Dias Gomes, talvez não imaginasse que a canção adquirisse tantos significados a partir da gravação de Ney Matogrosso, em 1981.
Pois o diretor Esmir Filho sabia bem o que queria mostrar quando escolheu o título do forró para o longa Homem com H, da Paris Filmes, a cinebiografia de Ney que estreia nesta quinta-feira, 1º, nos cinemas. Escrito e dirigido por Esmir, o filme percorre os principais fatos da vida e da carreira de Ney, mas também pontua a coragem e o preço que ele pagou por ser um homem e um artista – é preciso separar bem os dois – livres.
Nesse espaço entra um terceiro elemento: o ator Jesuíta Barbosa, intérprete de Ney no filme. “Eu tenho um história com Ney. O Jesuíta tem outra. Quando percebemos que a história do Ney reverberava nas nossas histórias, íntimas mesmo, percebemos que falaríamos sobre ser homem com h. Que território é esse da masculinidade que estamos questionando, pondo em cheque?”, diz o diretor ao Estadão, ao expor um dos caminhos do roteiro.
Jesuíta Barbosa é Ney Matogrosso em cinebiografia que mostra a liberdade do cantor Foto: Marina Vancini
“Podemos ser homens, podemos fazer o que quisermos e nos expressarmos da nossa forma”, acrescenta Esmir. “Do encontro do trio veio uma força pungente para o filme”, diz.
“Cinema não pode ser feito de outra forma senão do encontro. Eu entrei um pouco depois, mas essa tríade criou um roteiro que eu só celebrei e pude ter prazer em filmar”, diz Jesuíta.
Para isso, Homem com H parte de um assunto bastante comentado por Ney – e destrinchado em livros como Ney Matogrosso, a Biografia, de Julio Maria, e Vira-Lata de Raça – Memórias, de Ney Matogrosso e Ramon Nunes Mello – que é a conturbada relação do cantor com o pai, o sargento Antônio Matogrosso, de quem Ney, nascido Ney de Souza Pereira, pegou o sobrenome artístico. Mera coincidência? Não.
Elenco de ‘Homem com H’ fala sobre filme que conta vida de Ney Matogrosso
Os atores Jesuíta Barbosa, Jullio Reis e Bruna Montaleone e o diretor Esmir Filho falam sobre a força de representar história do cantor nas telas
“Não quero filho viado nessa casa!”, grita o pai (Rômulo Braga), em uma das cenas mais fortes do filme. “Vou (embora) não só por mim, mas por você também. Para ver se você tem paz nessa casa”, diz Ney, ainda adolescente, para a mãe, Beíta, depois de uma violenta briga com o pai. Era Dona Beíta (Hermila Guedes) quem levava o menino Ney para assistir a shows na rádio. Cúmplice no sonho do garoto em ser artista, ela ainda vive. Tem 103 anos, e está sob os cuidados de Ney.
A partir da figura autoritária do pai, Ney, derruba um a um os déspotas que em algum momento de sua vida lhe tentaram colocar rédeas – e isso se torna um dos principais caminhos do roteiro. Do primeiro namorado, já na fase adulta, até o compositor Cazuza, interpretado por Jullio Reis, de quem Ney já declarou ter sido completamente apaixonado. Mesmo assim. Quase ninguém é capaz de domar Ney.
Nem mesmo o sucesso dos Secos & Molhados, grupo que o revelou como cantor, foi capaz de prendê-lo. Quando viu que o pai do colega João Ricardo, o jornalista João Apolinário, desejava assumir o controle, pulou fora. E mandou ele enfiar o contrato que o deixava em posição inferior a João Ricardo e Gerson Conrad no devido lugar. A despedida de Ney e João Ricardo (Mauro Soares) configura uma das cenas mais delicadas do longa.
Para interpretar Ney, Jesuíta Barbosa teve que aparar arestas. O ator se define como “estacado”. “Enquanto Ney é arredondado”, avalia Jesuíta. “Eu procurei tanto as semelhanças quanto as diferenças. Era importante também colocar as diferenças em cena, pois elas comunicam algo de meu, que é muito, muito íntimo”, diz o ator. “Quem trabalha com atuação sabe dividir essas emoções a partir de memórias afetivas e de traumas. Muita coisa do que ocorre em cena que partiram de mim”, confessa.
Jesuíta teve que dar conta da volúpia do artista Ney. O longa reproduz diversas performances do cantor. Uma delas, uma apresentação na TV Tupi, em 1973, ainda com os Secos & Molhados. Ney, com a maquiagem pesada, inspirada no kabuki, encara a câmera e arregala os olhos para cantar Sangue Latino. Em outra, já em carreira solo, canta Bandido Corazón usando apenas um tapa sexo. A produção, que teve orçamento de quase R$ 18 milhões, recria cenários e figurinos importantes da carreira de Ney.
Nesses momentos, o longa adquire estética de clipe, por vezes frenética, para, depois, penetrar nos silêncios da vida pessoal de Ney. “Prezamos pelos momentos de afeto. É quando o filme para para respirar”, explica Esmir. “Eu sempre estava interessado nesses silêncios, nas pausas. Cinema se faz muito da imagem, quando vemos algo, mais do que quando ouvimos”, diz Jesuíta.
Jesuíta Barbosa em cena que representa Ney na fase Secos & Molhados Foto: Marina Vancini
Só entende quem namora
Fora do palco, Ney é representado como um cara talentoso e despido de qualquer convenção social. Tem, nos primeiros anos de carreira, dificuldade para lidar com dinheiro e compromissos. E, muitos, muitos amores de papel.
Uma sequência de puro amor livre mostra Ney a dois, a três, com homens e mulheres, ao som de Postal de Amor, música gravada em dueto com Fagner, que fala dos tais amores de papel.
A maturidade passional é representada pela chegada do médico Marco de Maria, nos anos 1980, na vida do artista. Eis quem foi capaz de domar Ney. Pelo coração. Eles se apaixonam e vivem juntos por 13 anos, até Marco ser vítima da aids. A chegada da doença, e como ela apavora os casais, é um terceiro momento sublime do filme, construído de maneira inteligente e, ao mesmo tempo, assustadora por Esmir. Ney também não se dobrou a ela.
Bruno Montaleone, intérprete de Marco de Maria, ficou sensibilizado com a história que teve de contar no teste para o papel. “Quando Ney tem a vontade de dividir a vida com alguém, ocorre isso. Mas será que é só dor? Não, tem muito companheirismo, até o último momento”, diz.
Jullio Reis (Cazuza), Jesuíta Barbosa (Ney) e Bruno Montaleone (Marco de Maria) em cena de ‘Homem com H’ Foto: Marina Vancini
É preciso deixar claro que, em nenhum momento, o filme tem um papel julgador, mesmo retratando o amor livre, do qual Ney, Marco e Cazuza eram adeptos – e há muitas cenas de sexo – nunca gratuitas – entre eles.
“O filme é um convite a entender o que é a liberdade para cada um. Ou o que é ter coragem. A liberdade é uma busca pessoal, em um sociedade em que há tantas forças externas querendo nos moldar. Para nós, artistas, bate muito nesse lugar”, diz Jullio Reis, intérprete do Cazuza.
Homem com H caminha até chegar ao lugar em que Ney, o real, se vê frente a frente com a sua história, de maneira simbólica. O cantor quis mais. Reconheceu a beleza da cena, mas sentiu-se “aposentado”, segundo suas palavras. Desejou, então, mostrar que está aí, em cima do palco, apresentado a turnê Bloco na Rua, que, criada em 2019, tem previsão de terminar apenas em 2026. Foi atendido por Esmir.
O Estadão questionou Ney como ele se sente ao se ver retratado não só nas telas, mas em iniciativas como livros e exposições. “Ler é uma coisa. Ver é outra, completamente diferente. Quando vi (o filme) pela primeira vez, fiquei muito impactado, cambaleei. Eu não esperava. Sou muito enrustido, durão”, respondeu o cantor. No entanto, diz que não faz reavaliações de sua vida. “É tarde para isso”, afirma Ney, aos 83 anos, e ainda cheio de amor livre para dar.