Ethan Hawke tem 55 anos, 1,80m de altura e mais de 40 anos de carreira. Lorenz Hart tinha 47 anos quando morreu, 1,47m de altura e uma genialidade musical que o colocou no panteão dos grandes letristas da Broadway. Para interpretar Hart em Blue Moon, Hawke precisou desaparecer completamente — e o resultado pode finalmente lhe render seu primeiro Oscar. “É muito divertido receber um roteiro que te assusta”, confessa o ator em entrevista ao Estadão sobre o longa-metragem, que chega ao Brasil em 23 de dezembro nas plataformas de compra e aluguel.
O filme, dirigido por Richard Linklater, se passa primordialmente na noite de 31 de março de 1943, durante a festa de abertura do musical Oklahoma!, que marcaria o início da bem-sucedida parceria entre Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II. Para Hart, ex-parceiro criativo de Rodgers, a estreia representa não uma celebração, mas uma dolorosa confirmação de que foi deixado para trás. Fugindo do teatro, ele se refugia no bar Sardi’s, onde acontecerá justamente a festa de comemoração, e ali desfila sua amargura, seus demônios e sua genialidade diante de um barman paciente e outros frequentadores da noite.
Uma transformação radical
A primeira coisa que impressiona em Blue Moon é a transformação física de Hawke. Ele interpreta esse homem bem mais baixo, com calvície avançada e aparência muito mais envelhecida que os 47 anos que Hart tinha à época. Hawke desaparece convincentemente no papel, graças a uma combinação de maquiagem transformadora, truques de câmera e uma mudança vocal impressionante.

Ethan Hawke consegue imprimir charme e complexidade em Lorenz Hart, um dos personagens mais complicados de sua carreira Foto: Sony Pictures/Divulgação
Mas a transformação vai muito além do físico. Hart era, nas palavras do próprio Hawke, “a pessoa mais diminuta da sala com a maior personalidade do mundo”. “Um homossexual apaixonado por uma mulher. Basicamente morrendo de ciúmes e ainda assim com capacidade de ser caloroso e empático. Ao mesmo tempo tão carismático e impossível de estar ao lado”, contextualiza Hawke, encantado pelo personagem.
Para dar conta dessa complexidade, Hawke passou meses em preparação disciplinada, memorizando páginas e páginas de diálogos densos e poeticamente construídos. “Cada parágrafo tinha um diamante dentro dele”, lembra o ator, que confessa que “ria até dormir apenas decorando essas falas”.
A parceria de 30 anos com Linklater
Blue Moon marca a nona colaboração entre Ethan Hawke e Richard Linklater, uma parceria que começou em 1993 e já produziu obras-primas como a trilogia do Antes e Boyhood. Para Hawke, trabalhar com Linklater se tornou tão natural quanto “andar de bicicleta”, mas nem por isso menos desafiante.
“É um pouco difícil descrever como você faz isso, você meio que pode cair no chão se tentar explicar. Tem sido muito fácil, tem sido maravilhoso”, explica o ator, comparando a experiência a uma conversa de três décadas com uma das pessoas mais interessantes que já conheceu. “Começamos a conversar em 1993 e continuamos conversando, e esses filmes são todos como desdobramentos de uma conversa de 30 anos”.
Para Blue Moon, Linklater e Hawke trabalharam em um roteiro de Robert Kaplow que circulava entre eles há cerca de 12 anos. O problema inicial? Hawke era jovem e bonito demais para interpretar o diminuto e envelhecido Hart. O tempo, de alguma forma, resolveu parte dessa questão.
Um dos aspectos mais fascinantes da construção do personagem foi a abordagem musical que Hawke adotou. “Comecei a ver o filme como uma canção de Rodgers e Hart de 90 minutos”, explica o ator. “Rick [Linklater] ia fazer a música e criar o esqueleto, a arquitetura, a musculatura do filme. E meu trabalho era ser Larry Hart e dançar essas letras por cima de tudo isso”.
A estratégia funcionou. Hawke ouviu repetidamente as composições de Lorenz Hart — clássicos como Blue Moon, My Funny Valentine e Isn’t It Romantic? — e começou a pensar em seus diálogos como letras de música, buscando o mesmo ritmo, a mesma sagacidade e a mesma melancolia que tornaram Hart um dos letristas mais celebrados da era de ouro da Broadway.
Um projeto de risco
Linklater e Hawke sabiam desde o início que estavam navegando em águas perigosas. “Sempre ouvimos atletas dizerem esse tipo de coisa: não há nada que te desafie como um grande oponente”, reflete Hawke. “E nesse trabalho, o alvo era tão pequeno. Seria muito fácil fazer um filme ruim disso, e é difícil ser assim tão simples”.

Lorenz Hart vive uma confusão sentimental em ‘Blue Moon’ Foto: Sony Pictures/Divulgação
O ator compara o desafio a um quarteto de cordas ou um desenho minimalista de Matisse: quando a estrutura é enxuta, cada nota, cada linha, cada palavra precisa ser perfeita. “Se você está tocando uma grande orquestra, pode errar algumas notas e ninguém vai notar. Mas se é muito simples, tudo tem que estar certo. Ou um desenho de linha de Matisse. Tudo tem que ser perfeito e simples. Mas isso é difícil de fazer”, conta.
O filme se passa quase inteiramente no bar Sardi’s, transformando-se essencialmente em um monólogo teatral filmado — uma decisão arriscada que poderia facilmente resultar em tédio. Mas a aposta funcionou. “Foi uma das minhas exibições favoritas na vida”, conta Hawke sobre a première no Festival de Cinema de Nova York, onde a plateia captou cada nuance de uma história ambientada a poucos quarteirões de onde se desenrolou na vida real.
A performance de Hawke rendeu indicações ao Globo de Ouro, Critics Choice Awards e Gotham Awards, colocando-o em posição privilegiada na corrida pelo Oscar 2026. Com quatro indicações anteriores à estatueta — duas por atuação (Dia de Treinamento e Boyhood) e duas por roteiro (Antes do Pôr do Sol e Antes da Meia-Noite) — o ator ainda não levou para casa a premiação máxima de Hollywood.
Há, no ar, o clima de que chegou a hora. Mas a briga não vai ser fácil: Hawke vai ter que competir com nomes como Leonardo DiCaprio, Michael B. Jordan, Timothée Chalamet e, claro, Wagner Moura. O que pode fazer a diferença é que, agora, os votantes da Academia precisam assistir a todos os filmes indicados — e quem ver Blue Moon dificilmente ficará indiferente.
O filme teve sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Berlim em fevereiro de 2025, onde Andrew Scott venceu o Urso de Prata por Melhor Performance Coadjuvante. Desde então, tem acumulado críticas entusiasmadas, com destaque unânime para a atuação de Hawke.
Um tributo ao artista fadado ao esquecimento
Lorenz Hart faleceu poucos meses após aquela noite de março de 1943, vítima de pneumonia aos 48 anos. Sua morte foi acelerada por anos de alcoolismo, depressão e a pressão de suprimir sua homossexualidade em uma época cruel para quem vivia fora das normas. Enquanto Richard Rodgers seguiu para um sucesso ainda maior com Hammerstein, Hart foi gradualmente esquecido, suas letras brilhantes sobrevivendo mais do que seu nome.
Blue Moon não é apenas um filme sobre uma noite ruim na vida de um artista. É um lamento pela fragilidade da arte e de alguns dos artistas que dedicam suas vidas a criá-la. É sobre ser deixado para trás, sobre o ciúmes que corrói, sobre a solidão que não se dissipa mesmo em uma sala cheia de gente. E é sobre o talento que permanece intacto mesmo quando tudo o mais desmorona.
“Ele é um cara muito complicado”, resume Hawke. E é justamente nessa complicação — no espaço entre o carisma e o desespero, entre a genialidade e a autodestruição, entre a alegria performática e a tristeza profunda — que reside a magia de uma das performances mais impressionantes do cinema em 2025, em um dos últimos suspiros de um bom ano para as telonas.


