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    Lar»CULTURA & ENTRETENIMENTO»Entrevista histórica de Bob Dylan ao ‘Estadão’ completou 35 anos em 2025; leia na íntegra
    CULTURA & ENTRETENIMENTO

    Entrevista histórica de Bob Dylan ao ‘Estadão’ completou 35 anos em 2025; leia na íntegra

    adminPor admin21 de dezembro de 2025Nenhum comentário23 minutos de leitura0 Visualizações
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    Uma entrevista com Bob Dylan não é algo trivial e são pouquíssimos os jornais que têm uma em seu acervo. O Estadão, que está comemorando 150 anos em 2025, tem.

    No dia 28 de janeiro de 1990, na edição de domingo do Caderno 2, foi publicada a longa reportagem Na Estrada com Bob Dylan, de Eduardo Bueno, o Peninha, então editor-executivo do jornal. O texto trouxe os bastidores das 240 horas vividas pelo mítico cantor norte-americano em sua primeira visita ao Brasil para participar do festival Hollywood Rock. Trata-se da única ocasião em que o recluso artista aceitou falar com um veículo brasileiro.

    Voz de uma geração, o trovador de clássicos como Blowin’ In the Wind e Don’t Think Twice, It’s All Right sempre foi uma figura enigmática. Avesso aos holofotes, ele concedeu pouquíssimas entrevistas ao longo de seus 84 anos. Esta exceção surgiu graças aos esforços de Bueno, que apostou todas as fichas, incluindo colocar o emprego em risco, para aproximar-se de seu grande ídolo.

    “Havia uma competição muito acirrada entre o Caderno 2 e a Ilustrada, entre o Estadão e a Folha de S. Paulo”, relembra o jornalista gaúcho, que na época tinha 32 anos. “Nós montamos um grande time para competir com eles. E ficamos sabendo que a Ilustrada estava tentando de tudo para entrevistar o Dylan. Daí eu me desesperei, joguei todas as minhas fichas para tentar me aproximar dele, mas eu jamais tentaria como fã, porque seria muito ridículo”, complementa o jornalista gaúcho, que conta ter conseguido uma credencial especial para acessar o antigo Hotel Hilton, reservado para hospedar as atrações do Hollywood Rock na capital paulista.

    “Quando o ônibus do Dylan chegou, ele foi o primeiro a descer, passou direto e ficou puto porque não tinha um elevador só para ele. Mas aí ele subiu para o quarto e o resto da equipe começou a desembarcar. O último a descer foi o personal manager dele, Victor Maymudes (1935-2001), que virou meu grande amigo, e que é o motivo pelo qual eu me aproximei e fui afastado do convívio do Bob Dylan”, explica.

    Bob Dylan em show com os Rolling Stones, em São Paulo, em 1998 Foto: Monica Zarttini/Estadão

    Maymudes começou a trabalhar para Dylan nos anos 60 como segurança e depois virou o braço direito do cantor. Bueno havia feito a primeira tradução brasileira do clássico On The Road – Pé na Estrada, de Jack Kerouac, e editado Allen Ginsberg – referências da literatura beat – e conseguiu conquistar a atenção do sujeito com seu conhecimento anormal. “Larguei um xalalá [conversa fiada] na milésima potência. Ele poderia achar que eu era louco e me enxotar dali, mas ele entrou na minha”, diz.

    Prontamente, Maymudes revelou que ele e Dylan passariam a noite na boate adulta Kilt, na Praça Roosevelt (“um primo pobre do La Licorne”, define Peninha) e convidou o jornalista para acompanhá-los. As portas para adentrar o círculo dylanesco estavam abertas. “Nós saímos e o Dylan se agradou de mim. Conversamos sobre o Joseph Conrad, Marc Chagall…”, conta.

    ‘One More Cup of Coffee’ é uma canção mais cigana que judaica. Mas [Marc] Chagall é grande mesmo, é épico. Há um vigor étnico em sua pintura

    Bob Dylan

    A reportagem detalhista, com traços de New Journalism [ou jornalismo literário], começa registrando o encontro do bardo com um cadáver em uma madrugada na Avenida Ipiranga. Em meio aos detalhes de bastidores estão entremeadas conversas íntimas com Zimmerman sobre temas culturais de modo geral. Ele opina, por exemplo, a respeito da cinebiografia de Jerry Lee Lewis, de 1989, e do clássico Paris, Texas (1984).

    Após o show no Estádio no Morumbi, em 18 de janeiro, Dylan resolveu viajar de ônibus ao Rio de Janeiro, para o concerto do dia 25. Bueno sugeriu que não fossem pela Via Dutra, mas sim pela Rio-Santos, por conta das praias e da paisagem mais bela. “O motorista brasileiro não queria ir pela Rio-Santos, mas o Victor disse: ‘nós vamos por onde o Eduardo mandar’. E me convidou para ir junto.

    Pedi dispensa do Estadão, e o Augusto Nunes [ex-diretor do jornal] disse: ‘eu só dou essa dispensa se você voltar com uma matéria e uma entrevista. Se voltar sem a matéria, eu vou te demitir’”.

    Sob essa pressão, Peninha passou a semana inteira com os gringos no Rio. “Dylan desapareceu, foi com uma gostosa para o Parque Nacional de Itatiaia, onde ela tinha uma casa. Depois foram para Ilha Grande. E quando ele voltou fez uma sessão de gravação de quatro horas com David Stewart [do Eurythmics, outra atração do Hollywood Rock] e alguns músicos brasileiros. Então, a reportagem saiu e o Dr. Júlio de Mesquita Neto (1922-1996) me chamou para dizer que aquela era a melhor matéria publicada na história do Caderno 2”, rememora, com orgulho.

    A relação de Bueno com a trupe de Dylan duraria mais alguns anos. Ele fez viagens internacionais para acompanhar os amigos em turnê, mas tudo desmoronou quando o músico e Maymudes romperam após desavenças relacionadas a um bar do qual eram sócios em Los Angeles.

    Peninha também se desentendeu com o manager, que planejava publicar um livro chamado Another Side of Bob Dylan. “Fui eu que escrevi esse livro. Não tem o meu nome, porque o Victor morreu. Os meus originais estavam lá e o filho dele publicou”, afirma Bueno.

    Reportagem de Eduardo Bueno no ‘Estadão’ registrando a rotina de Bob Dylan no Brasil em 1990 Foto: Acervo Estadão

    Leia a reportagem na íntegra: Na estrada com Bob Dylan

    A polícia invade a cena com suas luzes vermelhas piscando na noite abafada, como na letra de Hurricane. Só que em vez de Nova Jersey, 1965, e de três corpos caídos no balcão de um bar, a ação se passa em São Paulo, janeiro de 1990, e há um único cadáver na calçada da Av. Ipiranga quase esquina com a Sete de Abril. Bob Dylan, de calça grossa de veludo azul, botas pretas de cowboy e blusão vermelho, encara o corpo e o sangue durante alguns segundos. Depois, vira as costas, atravessa a rua com o passo firme e se dirige para o Hilton Hotel, cuja fachada iluminada dá quase de frente para o crime. São quatro e seis da manhã do dia 18.

    Victor Maimudes, 56 anos, quase dois metros de altura, produtor e companheiro de Dylan desde 1971, o segue de perto. Atrás estão Rick Jarrard e Mitch Fennel, os seguranças reforçando a proteção do cantor, que não quis ser reconhecido para o show no Estádio do Morumbi, às oito horas da noite seguinte.

    Maimudes e os dois seguranças discutem. “Bob poderia ter sido morto”, rosna Fennel, um gorila de aparência brutal, com uma passagem não exata- mente suave pelo Vietnã. “Você quer o quê?”, pergunta Maimudes, “Bob sai na rua a hora que quer e vai onde quiser. Seu trabalho é estar sempre por perto e protegê-lo em qualquer circunstância”. Fennel recebe US$ 1.500 por semana, fora diárias, passagens e estadia em hotéis cinco estrelas.

    O primeiro e tormentoso passeio de Bob Dylan pelo centro de São Paulo se iniciara três horas antes. Depois de passar muito tempo trancado em sua suíte do hotel, ele desceu a escadaria caracol, usa vestindo jaqueta de couro pesada e luvas diáfanas sob o sol escaldante daquela manhã de verão. Dylan finalmente desceria por volta do meio-dia e se sentara-se no bar do hotel, sob o olhar curioso de alguns hóspedes. Às duas da tarde, ele saiu com Maimudes e Fennel para uma caminhada pelo centro da cidade. Durante duas horas, percorreram a Rua Nestor Pestana, em frente à praça Roosevelt. Ali, entraram em várias boates e night clubs. Ficaram mais de uma hora no Kilt, esse lugar com sexo ao vivo, repleto de turistas japoneses e coreanos, e daquele tipo de gente que se autodenomina “executivo”. Ninguém, evidentemente, reconheceu Bob Dylan.

    Na volta para o hotel, eles passaram por vários mendigos e desabrigados, dormindo pelos umbrais e pelas calçadas, exatamente como o sujeito que inspirou Dylan a compor Only a Hobo, em 1961, quando Nova York ainda não estava totalmente tomada de desabriga- dos como a própria São Paulo. Depois, já em frente ao hotel, o barulho da entrada ruidosa da Rua Ipiranga, com seus carros e ônibus, fez com que ele virasse e recolher mais uma vez o cadáver. Como em Hurricane. Como em Joey. Como em George Jackson. Menos de 24 horas depois de sua chegada ao Brasil, Bob Dylan tinha uma visão precisa da noite urbana, cálida e violenta da maior cidade da América do Sul. Os dias seguintes e a viagem ao Rio de Janeiro lhe revelariam muito mais.

    Bob Dylan é um homem calado, misterioso e incomum. É difícil aproximar-se dele e, mesmo quando você consegue, seu olhar inquiridor e melancólico, as rugas e os traços fatigados de seu rosto marcado e, acima de tudo, a aura de mitologia e de lenda que o envolve (mesmo que às vezes ele não faça nada para realizá-la e você nem sequer saiba quem ele é) tornam qualquer contato ou conversa mais íntima nada menos do que um desafio.

    “Não sou reclusivo. Sou exclusivo”, disse ele, certa vez, à revista People. E nesta sua primeira (quem sabe?) viagem ao Brasil, Dylan não desmentiu a fama. Afastou-se de jornalistas, fotógrafos e admiradores. Mudou planos, itinerários e até o programa das canções. Circulou pouco e falou menos ainda. E, no entanto, se, de alguma forma, você consegue furar a barreira erguida em torno dele, surgem, quase sempre, não um, mas vários Dylans, inusitadas facetas de um caráter. Talvez até o contrário. Mas é preciso valer a pena tentar.

    No Brasil — como em muitos outros lugares e circunstâncias — o melhor caminho para chegar até Bob Dylan é através de Victor Maimudes. Alto, aparentemente taciturno, cabelos turbulentos, olhar de águia acentuado pelo nariz aquilino, “sugerindo uma mistura de Clint Eastwood com Vittorio Gassman”, como escreveu Robert Shelton, um dos biógrafos de Dylan, Maimudes circulava pelo lobby do Hilton minutos após a chegada de Dylan ao hotel. Ele, o garoto de East Los Angeles, que cresceu junto com James Dean, Dennis Hopper e Dean Stockwell. Onipresente em todos os acontecimentos decisivos na cena pop dos anos 60.

    — Ei, você não é Victor Maimudes?, pergunta o repórter.

    — De onde você me conhece?

    — Desde aquela viagem na perua Ford azul, em fevereiro de 66. Aquele domingo pré-feira de carnaval, em Nova Orleans.

    — Como você sabe disso?

    — Eu estava no banco de trás.

    — Você leu o livro do Shelton. (No Direction Home, Penguin, 1986)

    — O do Shelton e outros 29. Escute, aquele ali não é o Marty Feldman? (ex-produtor e atualmente contador de Dylan).

    — Você conhece ele também? — Desde que ele expulsou o Larry Sloman (repórter da Rolling Stone) daquele hotel em Playmouth em 1976.

    — Você é deste planeta?

    Estavam abertas as portas para uma semana junto com Bob Dylan e sua equipe de 26 pessoas, em São Paulo e no Rio de Janeiro. O problema é que, depois que você convive com Dylan e seus assessores, depois que presencia o empenho desesperado desse homem para preservar sua privacidade, para manter-se afastado dos focos de luz, guardando e protegendo seu círculo restrito, exclusivo e fechado, você percebe que não há sentido, motivo ou profissão que possam justificar o vazamento de detalhes íntimos sobre o comportamento ou as opiniões casuais de Bob Dylan. Afinal, Dylan é de tal forma visado que existem livros que contam sua vida dia a dia, sem faltar quase nenhum (Bob Dylan ‘s Stolen Moments. Wanted Man, 1988). Há também dois jornais, com edições trimestrais, que o seguem passo a passo (Isis e Dylan News e duas editoras que publicam exclusivamente livros sobre ele (Hobo Press e Bob Dylan Information Office). Mas qual o sentido em revelar quantos cigarros e cervejas Dylan consome por dia? Ou quais as roupas que veste, os livros que lê, os passeios que deu ou o tipo de artesanato que possa compor? Por que motivo revelar as notícias que chegaram recentemente sobre sua família?

    Mesmo assim, há vários assuntos sobre os quais Bob Dylan fala, quase todos ligados à música e à cultura em geral e que dificilmente se importaria em ver publicados. Em primeiro lugar, é importante colocar que, quando as portas se fecham e a imprensa fica do lado de fora, Dylan despe a carranca. Claro que seu rosto permanece absolutamente perturbador e invulgar. Claro que o ar de mistério que o envolve não se desfaz e o astral que o envolve não recomenda uma aproximação menor do que pelo menos dois metros. No entanto, as coisas fluem muito mais fáceis.

    “Eu me sinto bem em qualquer lugar, contanto que as pessoas não ajam como se pensassem que sabem quem eu sou. Porque elas não sabem. E eu não preciso da ajuda delas para saber. Mas o pior mesmo são as fotos… Não gosto de estranhos tirando fotos minhas. Gosto de posar, mas tenho de conhecer o fotógrafo. Gosto de ser fotografado por Ken Regan. Gosto de Annie Leibovitz. Não gosto de desconhecidos por trás de uma Nikon (com motor)”, dizia Dylan logo depois de desembarcar do ônibus que o levara de São Paulo até o Rio Palace Hotel, em Copacabana, onde um batalhão de fotógrafos o esperava no entardecer lilás da sexta-feira, dia 19.

    “Não me importaria em viver na estrada, de um show para o seguinte, se não houvesse tanta gente ao redor, em cada desembarque, em cada chegada ao hotel.” Na verdade, não havia tanta gente assim nos desembarques e nos hotéis em que Dylan esteve no Brasil, mas ele age assim por uma espécie de reflexo condicionado e, às vezes, parece incapaz de perceber a diferença entre São Paulo e Londres.

    Atualmente, Dylan, seu trio (G.E. Smith na guitarra, Tony Garnier no baixo e Christopher Parkers na bateria) e sua entourage estão realizando a Fastbreak Tour, uma excursão que começou na sexta-feira, 12 de janeiro, no Toad’s Place, bar em New Haven, Connecticut, onde Dylan e a banda tocaram durante seis horas para 250 pessoas. No domingo, dia 14, do show foi no Rec Hall, em State College, na Philadelphia e na segunda, dia 15, no McCarter Theater, em Princeton, Nova Jersey, com Dylan outra vez especialmente entusiasmado. Logo depois do show de quinta passada, no Sambódromo, no Rio, o grupo embarcou para Paris, onde tocam amanhã (29), terça, quarta e quinta no Grand Rex. Na sexta, seguem para Londres e se apresentam de sábado (3 de fevereiro) até quinta (8), no aconchegante Hammersmith Odeon, para duas mil e 500 pessoas (o número ideal para o atual formato do show de Dylan). No dia 13 de fevereiro, ele estará em Detroit, nos EUA, para ver — e provavelmente tocar — com Tom Petty. E, então, no início de março, ele, Petty, George Harrison e Jeff Lynne — os Travelling Wilburys — voltam ao estúdio para gravar o volume dois do disco que fez tanto sucesso em 88. No lugar de Roy Orbinson, falecido em janeiro de 89, estará o lendário Carl Perkins, autor de Blue Suede Shoes.

    — Acho Carl a escolha perfeita. A idéia foi de George (Harrison). Carl é um homem de uma energia inabalável, um sujeito [?] mesmo. Em 1956, e virou a cabeça de todo mundo com Blue Suede Shoes. Nunca vou esquecer o que essa música fez por mim, diz Dylan.

    — E o que você achou de Great Balls of Fire? (No Brasil A Fera do Rock, cinebiografia de Jerry Lee Lewis, dirigida por Jim McBride.)

    — Gostei. Gostei bastante. Não deve ter sido fácil para Dennis Quaid representar o papel de Jerry e fazer com que as pessoas esquecessem que quem estava ali era Quaid, pelo menos na maior parte do filme.

    — E Elvis? Você chegou a conhecê-lo pessoalmente?

    Nesse instante, Victor Maimudes levanta-se bruscamente de sua poltrona em um dos cantos da suíte refletindo todos os sinais de que alguma barreira foi ultrapassada (‘Did I miss the mark or stepped the line that only you could see?’, pergunta Dylan em Shooting Star, canção de seu último disco, Oh Mercy e, de repente, a pergunta começa a valer para você próprio).

    “One more cup of coffee before we go to the valley bellow’ (mais uma xícara de café, antes de irmos para o vale lá embaixo), diz Maimudes, citando uma letra de Dylan e pondo claramente fim ao primeiro encontro.

    — One More Cup of Coffee é uma das minhas favoritas. Me lembra Chagall, insiste o repórter.

    — É uma canção mais cigana que judaica. Mas Chagall é grande mesmo, é épico. Há um vigor étnico em sua pintura, diz Dylan, aparentemente disposto a continuar a conversa.

    — Nem vez você disse que os grandes pintores assado, se estivessem vivos hoje, seriam cineastas

    — Michelangelo e Cezanne, sem dúvida. Matisse talvez não.

    Maimudes já está abrindo a porta. Dylan desvia o olhar e encara um pé de romã florido próximo da janela da suíte que dá para a Avenida Ipiranga. É hora de ir embora.

    Mais tarde, Maimudes diria: “Você não devia ter falado em Elvis. Bob ficou dez dias sem dizer uma só palavra quando Elvis morreu. Provavelmente porque sabia que, se ele estivesse cercado pelos amigos certos, ainda estaria vivo. Puxa, tem minha idade! Mas sua vida era só junk food, e pílulas, e solidão e loucura. Já se passaram tantos meses, mas a morte ainda não nos abandonou.”

    O cantor americano Bob Dylan caminhando ‘disfarçado’ no Brasil, em 2012 Foto: Jotabê Medeiros/Estadão

    No dia seguinte, quinta-feira, 18, Bob Dylan e sua turma vão para o Estádio do Morumbi às oito horas da noite. O som descartável do Tears for Fears se esparrama, onde Dylan e G.E. Smith se sentam para decidir as canções que vão interpretar. I Shall Be Released é a principal novidade: Dylan não a cantava fazia quase um ano. Like a Rolling Stone e Knockin’ On Heaven’s Door (a preferida de G.E. Smith, naquela noite) — estão, sempre, na lista. Com um terninho preto com lantejoulas prateadas que cairia melhor em Waldick Soriano (“concebido” especialmente para Bob por Suzi Pullen, sua figurinista exclusiva, que acompanha a turnê, ela uma australiana imensamente mais charmosa e gostosa do que a roupa que apresentou), Dylan sobe no palco às 11 horas e dez minutos para um show enxuto e equilibrado.

    Sua voz está mal equalizada (“Eu não podia aumentá-la sem aumentar junto a guitarra de Bob”, justificaria mais tarde Ed Wynne, o encarregado do som), os supostos 400 mil watts de potência soam como se fossem quando muito 100 mil. Mas a música é vigorosa e intensa. Ouvindo novamente a fita do show, você percebe quantas pérolas jogadas à lama: I Want You foi interpretada com gosto e charme. Ballad of a Thin Man, um blues enfumaçado e colérico. Got Serve Somebody (a preferida de G.E. Smith, naquela noite) e All Along the Watchtower (a favorita de Garnier), ambas esplêndidas. Pobres diabos que não conhecem — ou não reconheceram — o som que Dylan fazia talvez até possa ser desculpado. Os demais — críticos, especialmente — devem procurar o problema em si mesmos, não nas performances de Dylan. É claro que não foi um show perfeito nem uma performance mitológica de Dylan, mas, mesmo assim, o concerto foi plenamente satisfatório.

    “Tive a impressão de que estava tocando para meia dúzia de pessoas. A distância entre o palco e a plateia era imensa. Foi a pior coisa do show. Só consegui distinguir os seguranças à minha frente, mais nada. Mesmo assim, espero que as pessoas tenham gostado”, comentou Dylan. Muita gente, entretanto, não gostou. Mas, no fundo, quem se importa?

    Na entrada daquela madrugada, Bob já estava de volta ao claustro de sua suíte, onde algumas roupas que ele mesmo lavara (“Lavagem química destrói as roupas. Se você vive em hotéis, é melhor lavá-las você mesmo”), estavam penduradas em uma corda. Do seu quarto, no 23º andar, Victor Maimudes lhe fazia uma ligação telefônica. Como em todos os demais casos, todos os presentes no quarto de Maimudes (geralmente muitos) calavam imediatamente suas bocas. Era como se Victor falasse diretamente com os céus.

    “Dave Stewart não pôde ver o show. O avião dele atrasou doze horas. Annie (Lennox) estava lá e adorou. Eles gostariam de conversar com você”, diz Maimudes. Mas Dylan está muito cansado e marca o encontro para o dia seguinte.

    “Minha tarefa é essa mesmo”, diz Maimudes à seguir. “Tento adivinhar o que Bob quer fazer. Às vezes, acerto. Se adivinhar errado, me corrigem instantaneamente.”

    Para o dia seguinte, sexta-feira, 19, está programado o ônibus até o Rio de Janeiro. O plano é que o acampamento em frente ao hotel, só de mulheres, seja desfeito antes do sol nascer. “Dylan é um cara legal, mas não é o Mick Jagger”, diz Victor.

    Dylan, Patricia Mulligan e uma quarta pessoa partiriam de carro (um Santana Quantum) para Parati, via Rio-Santos. Em Parati, os quatro ficariam na Pousada Pardieiro, onde chegaram a fazer as reservas. Mas Victor adivinhara errado: depois do breve encontro com os Eurythmics, Dylan decide que todos irão de ônibus: E pela Via Dutra mesmo. Uma vez no ao Rio, com cinco dias livres pela frente, decidiriam o que fazer.

    “As primeiras imagens do Rio de Janeiro que me vêm à mente são do livro White Jacket, de Herman Melville, cuja primeira parte se passa aqui”, revela Dylan, depois de um desembarque tumultuado (que quase custou o emprego de Mitch Fennel) e no qual chegou a falar para um repórter da Globo: “Respondo qualquer pergunta, desde que você tire os fotógrafos daqui”. A conversa não foi além disso.

    — Você disse que, para ser um bom compositor, não é preciso ouvir muita coisa. Basta ler Melville e Whitman.

    — Eu disse?… Bem, pelo menos na América acho que é assim.

    — E Conrad?

    — O que há com Conrad?

    — Gingsberg, certa vez, comentou que uma canção sua (Black Diamond Bay, do disco Desire), parecia com um conto de Conrad.

    — Então deve ser…

    — E Sam Shepard?

    — O que tem Sam Shepard?

    — Será que ele já leu Conrad?

    — Por que você está perguntando isso?

    — Porque, durante a turnê de 76, a Rolling Thunder Revue, você perguntou se ele já havia lido Conrad, e ele disse que não. Então você sugeriu que ele o fizesse.

    — Sam é um sujeito esperto. Tem suas próprias idéias e seus próprios autores favoritos. Se ele leu Conrad, deve saber que esses livros por si próprios. Não precisa de sugestão de ninguém.

    — Estou traduzindo um livro dele. É Hawk Moon (A Lua do Falcão).

    — Bom livro. Quase tudo que Sam escreve é muito bom. Gosto muito desses estilhaços, desses fragmentos de memória dele. Tanto quanto das peças.

    — Você gostou de Paris, Texas?

    — Uhm… médio. Mais do roteiro do que do filme, eu diria.

    De alguma maneira, o estreito limite dentro do qual Bob Dylan aceita responder as perguntas fora novamente ultrapassado. Os sinais agora já se tornaram mais evidentes do que no primeiro encontro e dessa vez ninguém precisou insinuar que a conversa estava encerrada. No entanto, ainda havia tanta coisa sobre o que falar…

    No sábado, no fim de tarde, Dylan sai sozinho (acompanhado à distância por Fennel) e passeia pela Avenida Atlântica, com um capuz ridículo e óculos escuros, tentando disfarçar, mesmo que ninguém pareça muito interessado em reconhecê-lo. Olha vivamente interessado para as vitrines de artesanato. Mais tarde, volta ao hotel e recomenda que Victor Maimudes compre várias delas no dia seguinte, domingo. À noite, Dylan senta-se no bar em frente ao Rio Palace, ainda de capuz e óculos, e conversa longamente com Marty Feldman sem ser abordado por ninguém.

    No domingo, 21, Richard Fernandez, manager da turnê, mexicano de Chichuahua, que mora no Havaí e está com Dylan desde 1985, conversa animadamente com Jeff Kramer, personal manager de Dylan, na piscina do Rio Palace. Kramer, rosto ossudo, barba por fazer, sobrancelhas grossas e olhar astuto, é a prova viva de que nada é impossível: com uma cara assim ele conseguiu casar com a arrasadora top model Pauline Porizkova, agora casada com Rick Ocasek, da banda The Cars. Ambos falam de música brasileira.

    “Gosto do ritmo, do balanço. É claro: não estou dizendo nenhuma novidade. Todo mundo sabe disso. Comprei essas duas fitas. Nunca ouvi falar desses sujeitos, mas estavam em liquidação. Acho que custaram alguns centavos de dólar, não muito mais do que isso, em uma loja que me fez lembrar Turquia. Gostei das duas”, diz Hernandez, mostrando o Espelho Cristalino, de Alceu Valença, e uma fita de Bezerra da Silva.

    — É, não está mal. Mas pessoalmente prefiro Neville Brothers — responde Kramer.

    — E Bob, será que ele ouviu alguma coisa brasileira? — arrisca o repórter.

    — Por que você não pergunta isso para ele? rebate Kramer. Você sabe muito do que ele ouve, o que não é difícil perguntar o que ele segue na sala.

    — Talvez porque ele não goste de responder a essas perguntas.

    — Bob não ouve muita coisa moderna, como intervém Hernandez. — E sabemos, com palavras de um Kramer que finge assumir antes polêmicas.

    — Ele tem sempre umas dez, quinze fitas com ele. Tudo velharia: Bill e Charlie Monroe, rural blues, Jesse Fuller, essas coisas. Ultimamente, tem ouvido muito Carl Perkins.

    O sol está se pondo e o salmão com palmito que foi pedido há pouco é servido na mesa. Tony Garnier, o baixista, passa rápido e avisa que há frente do hotel há uma roda de samba em andamento. Hernandez e Kramer preferem o peixe.

    Enquanto isso, o grande, o afável, o risonho Victor Maimudes (que todos os livros sobre Dylan insistem em pintar como um homem calado e arredio), está em seu quarto, grudado ao telefone. Fala-se que Dylan fará em duas instâncias internamente distintas: de segunda a quinta antes do concerto no Rio e depois de março, após a gravação com os Travelling Wilburys. São telefonemas longos, detalhistas.

    “Já temos 176 datas marcadas para 1990. Vamos estar na Europa durante a Copa do Mundo. Bob está preocupado em saber onde será o show em cada província. Deve haver um cinema em cada cidade. Bob desistiu imediatamente. Os chineses tentam nos levar para tocar lá há mais de cinco anos. As chances ficaram quase nulas agora. Bob está muito mais interessado no Leste europeu: Romênia e Checoslováquia, mais especificamente.”

    Quando alguém sugere que Dylan poderia dizer isso, ele próprio, para a imprensa, Maimudes rebate: “Você está louco? Ainda não percebeu que Bob vive na estrada? Ele praticamente não tem casa. Mora nesses hotéis, com todos esses seus corredores iguais. Por isso, tem que trabalhar na estrada também. Tem sempre uns 15, 16 livros com ele: é um leitor voraz. Além disso, compõe muito na estrada. Mais de 50% de suas canções devem ter sido criadas em hotéis nono este. Quem pode assegurar que ele não está escrevendo uma canção neste exato momento? Por isso, é um homem que precisa de paz, de tranquilidade.”

    Na sexta-feira, 26, depois do show no Sambódromo, sem que ninguém da equipe chorasse — já que nenhuma pergunta pode ser feita —, Bob Dylan, Victor Maimudes e sua turma pegaram um avião para Paris e partiram para mais um aeroporto, mais um ônibus, mais um bando de fotógrafos e repórteres, mais um saguão de hotel, mais corredores acarpetados exatamente iguais e para mais algumas dias de claustro em uma suíte, até que Bob Dylan fosse liberado, no palco, pelo poder de sua própria música.



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