Por Radomécio Leite
A discussão sobre a concessão de anistia a agentes que atentam contra a ordem democrática no Brasil, especificamente os que protagonizaram o 8 de janeiro, envolve um dilema recorrente entre reconciliação e justiça. Episódios registrados no decorrer da história, como o golpe militar que depôs o presidente da República João Goulart, no Brasil, o assassinato do presidente egípcio Anwar Al-Sadat, e do primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin revelam que a impunidade — frequentemente institucionalizada por anistias amplas — não pacifica a sociedade. Pelo contrário, ela estimula novos ciclos de violência política, extremismo e rupturas institucionais. Esses casos oferecem lições importantes sobre os riscos de tolerar ou perdoar aqueles que, por ação direta ou indireta, colocam em risco a sobrevivência do Estado Democrático de Direito.
O Egito dos anos 1970 ilustra a perigosa crença de que a anistia pode neutralizar grupos extremistas. Anwar Al Sadat foi presidente do Egito de 1970 a 1981. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 1978. Na tentativa de pacificar o país após o período nasserista (Abdel Nasser, ex-presidente do Egito), Sadat libertou centenas de militantes islamistas que estavam presos. Muitos desses grupos, longe de se desmobilizarem, reorganizaram-se clandestinamente e intensificaram sua radicalização religioso-política. Em 6 de Outubro de 1981, Sadat é assassinado durante uma parada militar no Cairo por membros da Jihad Islâmica Egípcia infiltrados no exército e que eram parte da organização egípcia que se opunha ao acordo de paz com Israel. Parte desses militantes — infiltrados inclusive em unidades do Exército — assassinou o próprio presidente em um ataque público. O episódio demonstra que anistiar atores que rejeitam a democracia e os direitos civis não reduz a violência: apenas lhes devolve capacidade organizativa e oportunidade de agir contra o regime.
No caso israelense, a lição central está no custo da tolerância com discursos de ódio e violência política não punidos. Durante o avanço dos Acordos de Oslo, Yitzhak Rabin foi alvo de uma campanha intensa de incitação promovida por setores ultranacionalistas e religiosos que eram radicalmente contra o avanço do acordo de paz com o líder Palestino Yasser Arafat. Apesar das reiteradas ameaças, praticamente nenhum dos responsáveis por esses ataques verbais e violentos sofreu consequências jurídicas. Em 4 de novembro de 1995 Rabin foi assassinado em plena Tel Aviv, por um estudante extremista israelense que acreditava estar defendendo sua nação contra o processo de paz. Assim, o caso mostra que a ausência de responsabilização prévia cria um ambiente simbólico em que grupos radicais sentem-se legitimados a agir como árbitros violentos da política. A impunidade comunica permissão.
O Brasil oferece uma lição ainda mais estrutural. Quando proclamou a República (1889), Marechal Deodoro passou a conviver diante de uma horda de conspiradores pró Monarquia. Reclamava, que convivia cercado de “sentinelas” conspiradores lhe tiravam a paz e ameaçavam-lhe derrubar a juvenil República que se estabelecera, até que conseguiram desestabilizá-lo provocando-o para renúncia, com o vice-presidente Marechal Floriano Peixoto assumindo.
Na década de 1920, eclode o Levante Tenentista, movimento organizado por militares contrários à República brasileira. Diversos episódios marcaram a década, até que foram repetidamente perdoados ou anistiados, alimentando uma tradição de intervencionismo fardado na política. A impunidade encoraja novos ataques contra a democracia.
Quando atores que violam a ordem constitucional não são responsabilizados, cria-se um incentivo para a repetição.
No Brasil, setores militares envolvidos em rupturas institucionais anteriores foram repetidamente anistiados (1922, 1930, 1937, 1945, 1954, 1961), criando uma cultura de “golpismo sem consequência” que culminou no golpe de 1964. A mensagem: se não há punição, há reincidência.
O golpe de 1964, que depôs João Goulart, ocorreu em um ambiente no qual os militares já sabiam que rupturas institucionais anteriores não haviam sido punidas, inclusive diversos militares associados com civis radicais foram anistiados pelo Presidente da República Juscelino Kubitschek, antecessor de João Goulart, que, numa tentativa de pacificar o país, concedeu anistia com aprovação do Congresso Nacional aos golpistas que tentaram derrubá-lo do poder, como ocorreu na rebelião de Jacareacanga. JK cometera um erro estratégico que fortaleceu a disposição dos golpistas, que mais adiante prepararam deram o golpe certeiro em João Goulart. Posteriormente, a Lei de Anistia de 1979 consolidou a impunidade dos agentes da ditadura, impedindo responsabilização por graves violações de direitos humanos e pelo próprio golpe. O resultado foi a manutenção, por décadas, de tensões entre civis e militares e a reincidência de atitudes ameaçadoras à ordem democrática. O caso brasileiro demonstra que quando se anistia um golpe, prepara-se o terreno para o próximo.
A partir desses três episódios (Brasil/Egito e Israel), torna-se evidente que democracias não podem ser neutras em relação àqueles que buscam destruí-las. O perdão institucionalizado, quando aplicado a atores que violam deliberadamente as regras democráticas, transforma-se em incentivo. Ao abdicar da justiça, o Estado enfraquece sua própria autoridade, abre espaço para a ação de extremistas e normaliza comportamentos golpistas. Responsabilizar não é vingança; é mecanismo de autopreservação institucional.
Anistias irrestritas para quem viola a democracia produzem exatamente o ambiente que torna novos golpes, atentados e assassinatos políticos mais prováveis.
Os casos de Sadat, Rabin e João Goulart mostram que:
Sem justiça, não há segurança; sem responsabilização, não há democracia duradoura.
Em síntese, os episódios ocorridos com os presidentes do Brasil, João Goulart, do Egito, Anwar Al-Sadat, e com o 1º Ministro de Israel, Yitzhak Rabin, evidenciam a sanha golpista estruturada com assassinatos brutais seguida de continuadas formas de violações de direitos humanos, flagrante emprego de violência física e repressão como forma de estabelecer controle político. A anistia concedida a agentes antidemocráticos não previne conflitos — ela os semeia, assim serve como endosso e estímulo para que golpistas comecem a urdir uma nova trama. Democracias estáveis não se constroem sobre o esquecimento, mas sobre a responsabilização. Somente quando a violação da ordem constitucional encontra resposta firme e proporcional é que se estabelecem as bases para uma convivência política segura e plural.


