As primeiras semanas de Trump nos colocam diante de dois perigos: a subestimação do neofascismo e o derrotismo por antecipação. Haverá resistência e luta.
“Os novos movimentos sociais refletem a angústia de amplas camadas sociais abandonadas pela dinâmica do capitalismo tardio. Essa dinâmica envolve o perigo de que essas camadas progressivamente se despolitizem e possam constituir uma base social para ataques da direita, incluindo os neofascistas, contra as liberdades democráticas. Qualquer política de ‘paz social’ ou de consensos pseudo-realistas com a burguesia produzem a impressão de que basicamente não há outras opções políticas, e assim fazem piorar o perigo.”
– Ernest Mandel. O socialismo e o futuro. Façamos renascer a esperança
Estas primeiras semanas do segundo mandato de Trump foram terríveis. Uma sequência frenética de horrores, algo no estilo “sturm und drang”, tempestade e ímpeto, agressão e ataque, ofensiva de choque, insolência do terror. A defesa da limpeza étnica dos palestinos na Faixa de Gaza culminou, nas investidas internas e externas, com a apologia de um crime contra a humanidade. Mas é preciso considerar, também, o impacto nos outros países imperialistas. O Reform UK, partido de Nigel Farage no Reino Unido, apareceu em pesquisa, pela primeira vez, à frente do Labour Party do primeiro ministro Keir Starmer; o AfD na Alemanha ameaça superar os 20% nas eleições deste mês; opartido de Le Pen na França já se posiciona para tentar vencer as próximas eleições presidenciais, e por aí vai.
Diante desta evolução catastrófica, as esquerdas, moderadas ou radicais, estão diante de dois perigos. O primeiro é subestimar os neofascistas. Diminuir o significado que Trump, desdenhando seus discursos como bravatas, arroubos e fanfarronadas, é mais do que erro de análise de discurso. A análise marxista não pode se reduzir à análise de discurso. Faz parte do abecedário da luta política agigantar a própria força e apequenar a dos inimigos. Trump faz provocações porque confia que pode acumular mais forças. O autoengano, engrandecendo os obstáculos que ele ainda terá que enfrentar com os contrapesos institucionais nos EUA, e fricções com alas burguesas na Europa e Médio-Oriente, mesmo quando motivado pela boa intenção de não desesperar, não serve.
O segundo perigo é a desmoralização por antecipação. Haverá resistência e luta. As manifestações em Buenos Aires e Berlim sinalizam que ainda há reservas nos setores mais conscientes dos trabalhadores e da juventude, do feminismo e dos movimentos anti-racistas, dos LGBT’s e dos ambientalistas, da arte e da cultura. A lucidez de reconhecer a força da ofensiva deve ser indivisível da determinação de enfrentá-los. Uma esquerda sem força moral está rendida. Quem não confia na possibilidade de vitória não luta. Os neofascistas não são imbatíveis.
Os revolucionários são a ala da esquerda que se alimenta da esperança. Estão engajados em um projeto estratégico que exige um realismo radical. Mas abraçam o otimismo. Alguns até incorrigíveis. A causa socialista atraiu pessoas com uma disposição subjetiva mais idealista ou ardorosa. Militantes animados por uma atitude combativa incansável.
Essa perspectiva sobre o futuro da condição humana, ou das possibilidades históricas da luta igualitarista dos trabalhadores ajuda a manter, politicamente, um compromisso militante, para além das vicissitudes das derrotas mais imediatas. Esta aposta repousou na esperança de que o proletariado, uma maioria assalariada que permhttps://antropofagista.com.br/2024/11/13/hezbollah-lanca-enxurrada-de-dranece politicamente dominada, socialmente oprimida e, economicamente explorada, seria capaz de lutar por si mesma de forma independente.
Entre os fundadores, e no marxismo da Segunda e também da Terceira Internacional, predominou uma inflexível confiança de classe, e um otimismo histórico sobre a transição ao socialismo. Este otimismo foi criticado ou acusado de fatalismo ou até mesmo teleologia. Uma das suas expressões teóricas mais criticadas pode ser encontrada no Tratado sobre Materialismo Histórico de Bukharin. Convém notar que a fórmula sempre condenada, porém pouco citada de Bukharin era, essencialmente, condicional. Admitia a incerteza:
“A condição necessária para um ulterior desenvolvimento é também chamada com muita frequência de necessidade histórica. É neste sentido do termo ‘necessidade histórica’, que podemos falar da ‘necessidade’ da revolução francesa, sem a qual o capitalismo não teria continuado seu crescimento, ou da ‘necessidade’ da chamada ‘libertação dos servos’, em 1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido continuar seu desenvolvimento. Neste sentido podemos também falar da necessidade histórica do socialismo, desde o momento que sem ele a sociedade humana não pode continuar seu desenvolvimento. Se a sociedade deve continuar sua marcha, o socialismo é inevitável.” (tradução e grifo nosso)[1]
Bukharin não estava errado. As lutas decisivas, portanto, a hora da revolução, poderiam variar e tardar de nação para nação, mas a perspectiva estratégica abraçada pelo marxismo era otimista sobre o futuro do socialismo. O capitalismo estaria condenado a sucumbir de crise em crise, e cada terremoto destrutivo teria que provocar uma reação e resistência do proletariado. A vitória da revolução socialista, ou seja, a conquista do poder pelos trabalhadores e seus aliados, permanecia condicionada pelas reviravoltas da luta de classes: um desenlace incerto. Não obstante, as derrotas parciais e nacionais seriam um momento de uma longa marcha que preparava, na dimensão mundial, novos combates em condições mais favoráveis à vitória final.
Entretanto, os medos, as inseguranças e a imaturidade do proletariado diante do desafio da luta pela direção da sociedade permanecem sendo a tese que sustenta o desalento, a desesperança, portanto, o ceticismo na possibilidade de triunfo de uma estratégia revolucionária. O argumento de que 150 anos de luta pelo socialismo teriam sido mais que o bastante para demonstrar a viabilidade do projeto pode impressionar.
O argumento é forte, mas não é novo. Esta posição não deveria surpreender em períodos de refluxo prolongado, ou depois de derrotas muito sérias, derrotas históricas. Não foi diferente depois das derrotas das revoluções de 1848, ou depois da derrota da Comuna de Paris, ou depois da derrota da revolução de 1905 na Rússia, ou depois da derrota da revolução alemã em 1923, ou depois da derrota diante do nazi-fascismo e da república na Guerra Civil Espanhola.
O impressionismo foi sempre perigoso em política, e fatal em teoria. Os receios e as angústias diante dos desafios da luta de classes se alimentam na força de inércia que atua, poderosamente, no sentido de manutenção e conservação da ordem. As forças de inércia histórica se apoiam, por sua vez, em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É porque são grandes estas pressões que as transformações históricas foram sempre lentas e dolorosas.
Quando esse sentimento de que não é mais possível continuar vivendo nas condições impostas pela ordem do capitalismo é compartilhado por milhões, então a força social da mobilização da maioria popular se transforma em uma das forças materiais mais poderosas da história. Uma força material terrível, maior do que os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que não venham a ocorrer novas ondas revolucionárias no futuro.
Não se trata somente de esperá-las. Mas de prepará-las. Elas virão.
(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo/Opera Mundi